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O CENTAURO IMPERIAL E O “PARTIDO” DOS ENGENHEIROS
O CENTAURO imperial e o “partido” dos engenheiros: A contribuição das concepções gramscianas para a noção de Estado ampliado no Brasil Império
Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro Marinho
Museu de Astronomia e Ciências Afins / PPGH – UNIRIO
“Quem passa na Avenida, à tarde, ali, no canto dela com a Rua Sete de Setembro, encontra um portão largo, que, em arquitetura, tem um nome especial e duro, cheio de velhos gamenhos, derretidos em sorrisos para as mulheres que passam. Esses velhos aos quais se juntam alguns moços, ainda mais gamenhos, são engenheiros ou cousa parecida, e o lugar, a casa, o portão – tudo isso é o Clube de Engenharia. É uma instituição ainda pior do que a Associação Comercial. É nela que se fazem, se ultimam, se homologam as maiores vergonhas administrativas do Brasil.” Lima Barreto
Introdução
O objetivo deste trabalho é revisitar algumas formulações gramscianas sobre Estado e, ao mesmo tempo, auxiliar na construção de subsídios teóricos à pesquisa mais ampla, em andamento[2], sobre os engenheiros brasileiros e suas relações de classe ao longo da segunda metade do século XIX. Foi partindo desta análise historiográfica que o estudo citado está balizado pela concepção de “Estado ampliado”. A partir desta matriz gramsciana, considera-se no Estado imperial não somente seus aparelhos de coerção – que visam e possibilitam uma dominação – mas também sua capacidade de produzir e reproduzir uma direção moral, intelectual e, portanto, cultural. Tal perspectiva ajuda a pensar como os engenheiros brasileiros construíram suas práticas e representações frente aos grupos organizados da sociedade civil a que estavam vinculados e, ainda, o que disputavam e como asseguravam sua presença nas diversas agências do Estado.
Outra importante contribuição ao estudo de agentes deste tipo é a noção de intelectual demarcada por Gramsci. De acordo com Gramsci, a história de um país sempre deve levar em conta a atuação dos intelectuais. Esta visão é fundamental, pois se refere à importância das ideologias e da cultura e, concretamente, a consciência de que todo processo de construção de hegemonia é inviável sem os intelectuais. Assim, os debates ideológicos, culturais, educativos ou científicos mantêm diversos laços com a luta de classes e não podem ser entendidos exclusivamente como um debate epistemológico e profissional entre especialistas. Os agentes deste processo são definidos amplamente como todos aqueles que exercem algum papel de formulação, direção, educação e organização em qualquer esfera da sociedade e não apenas naquelas tradicionalmente restritas ao “mundo das idéias”.
Ao longo da segunda metade do século XIX, as Escolas de Engenharia, o Instituto Politécnico Brasileiro (1862) e, mais tarde, o Clube de Engenharia (1880) desempenharam um papel de destaque no processo dinâmico da formação social brasileira, dado por meio da ascensão social e profissional conseguida graças à formação recebida e ao prestígio que, aos poucos, se fazia sentir do grupo de intelectuais-engenheiros.[3] É, portanto, observando esse contexto histórico que a pesquisa que procuramos desenvolver tem privilegiado a perspectiva organizacional das associações profissionais dos engenheiros e o caráter dinâmico das relações mantidas entre seus integrantes e o Estado imperial brasileiro na metade final do século XIX. Estas associações são analisadas como o locus onde se operou uma mediação profissional e política entre seus agentes e os dirigentes imperiais, constituindo-se em relevantes esferas de negociação e representação. Tal perspectiva possibilita estudar os engenheiros brasileiros como intelectuais em sentido amplo.
As concepções do revolucionário italiano Antônio Gramsci privilegiaram as formas através das quais se assegura o predomínio de um grupo ou fração de classe sobre o conjunto da sociedade nacional inteira, exercido mediante as organizações privadas de hegemonia. O Estado é compreendido como “o organismo próprio de um grupo destinado a criar as condições favoráveis à máxima expansão do próprio grupo” (Gramsci, 2000: 41). O que garante a eficiência desse processo expansivo é não ser identificado como a concretização de interesses exclusivos dos grupos beneficiados, mas como expressão de toda a sociedade.
Uma formação social não consiste apenas num modo de produção garantido coercitivamente pelo “poder do Estado”, mas também em hábitos de vida e pensamento, numa concepção de mundo amplamente difundida pela sociedade na qual se inserem os costumes, a moral, o gosto popular, o folclore, o senso comum e também os princípios filosóficos e religiosos da maioria da população. E é este modo de pensar e agir dos homens e dos governados que se constitui no mais importante suporte da ordem constituída. A “força plena” é uma reserva para os momentos excepcionais, os momentos de crise. Normalmente a hegemonia da classe ou fração de classe dominante se apóia sobre uma complexa combinação de forças políticas, sociais, culturais e em numerosas relações de interdependência, adesão dos governados ao tipo de sociedade em que vivem e sobre o consenso. Gramsci desloca a noção “centáurica” – meio homem, meio animal – do “Príncipe”, de Maquiavel, para o Estado, denominando-o como instituição composta de força e consenso, de dominação e hegemonia, de violência e civilização. Mas não se trata apenas de uma dualidade justaposta e sim de um processo orgânico complexo, sintetizando o Estado, no conjunto formado pela sociedade política e sociedade civil, em uma noção de “Estado ampliado”.
Gramsci e a “ampliação” do conceito de Estado
Afirmam alguns autores que a pouca operacionalidade das concepções do pensador italiano para estudos sobre o Estado brasileiro resulta do caráter “oriental” da formação social brasileira. Uma sociedade civil “amorfa”, “fraca”, “gelatinosa” ou mesmo “inexistente” e que tal característica seria um traço marcante no Brasil até um passado recente. De imediato, é possível contestar tal assertiva. Para Gramsci, o que é universal é exatamente a capacidade de conhecer concretamente a história específica de uma formação social e, além disso, lembrado por Juan Carlos Portantiero,[4] o próprio Gramsci já havia matizado a noção oriente/ocidente, pensando em “sociedades ocidentais de tipo tardio” ou “ocidente periférico”. Trata-se de assinalar, portanto, a idéia de um processo de ocidentalização que tem a sua historicidade e a complexidade, que pode envolver a simultaneidade de “oriente” e “ocidente”, em uma mesma sociedade. Em uma palavra, é possível pensar o “ocidente” como processo e não apenas como um estágio.
O conceito de Estado, em Gramsci, vem intimamente ligado ao de hegemonia. Gramsci era um político atuante, cujo objetivo era a elaboração de uma nova ordem social e a conquista do poder pelos trabalhadores, mas entendia isso como sendo, antes de tudo, a “criação de uma nova ordem intelectual e moral”:
“Mas, a partir do momento em que um grupo subalterno torna-se realmente autônomo e hegemônico, criando um novo tipo de Estado, nasce concretamente a exigência de construir uma nova ordem intelectual e moral, isto é, um novo tipo de sociedade e, conseqüentemente, a exigência de elaborar os conceitos mais universais, as mais refinadas e decisivas armas ideológicas.” (Gramsci, 1981: 100).
Para Gramsci, um dos elementos dessa construção é justamente o partido político. Ao partido caberá a “formação de uma vontade coletiva nacional-popular, da qual (…) é ao mesmo tempo o organizador e expressão ativa e atuante” (Gramsci, 1968: 9) e também a missão de preparar a “reforma intelectual e moral” (Gramsci, 1968: 9).
Gramsci procura recuperar para o marxismo a concepção “ético-política” da história, presente em Croce:
“O pensamento de Croce, portanto, deve pelo menos ser considerado como valor instrumental; assim, pode-se dizer que ele chamou energicamente a atenção para a importância dos fatos da cultura e do pensamento no desenvolvimento da história, para a função dos grandes intelectuais na vida orgânica da sociedade civil e do Estado, para o momento da hegemonia e do consenso como forma necessária do bloco histórico concreto” (Gramsci, 1981: 230-231).
Gramsci demonstra que estas questões não eram pouco importantes, tanto assim que figuravam na própria ordem de preocupações de Lênin:
“Que isto não seja ‘fútil’, é o que demonstra o fato de que – contemporaneamente a Croce – o maior teórico moderno da filosofia da práxis, no terreno da luta e da organização política, em oposição às diversas tendências ‘economicistas’, revalorizou a frente da luta cultural e construiu a doutrina da hegemonia como complemento da teoria do Estado-força (…)” (Gramsci, 1981: 231).
O erro de Croce não estava propriamente em analisar o momento ético-político, mas em superestimá-lo, hipertrofiá-lo, em querer construir um modelo histórico puramente ético-político, portanto, especulativo:
“Se é necessário, no perene fluir dos acontecimentos, fixar conceitos, sem os quais a realidade não poderia ser compreendida, deve-se também – aliás, é imprescindível – fixar e recordar que realidade em movimento e conceito da realidade, se podem ser logicamente distinguidos, devem ser concebidos historicamente como unidade inseparável. De outro modo, sucede o que sucedeu a Croce, isto é, a história torna-se uma história formal, uma história de conceitos e, em última análise uma história de intelectuais…” (Gramsci, 1981: 247).
Croce prescindiu “do conceito de bloco histórico, no qual conteúdo econômico-social e forma ético-política se identificam concretamente” (Gramsci, 1981: 233), incorrendo numa “hipóstase arbitrária e mecânica do momento da hegemonia, da direção política, do consenso, na vida e no desenvolvimento da atividade do Estado e da sociedade civil” (Gramsci, 1981: 217). Para Gramsci, a filosofia da práxis não elimina o momento ético, mas o coloca numa justa relação de unidade dialética com a realidade econômico-social e assinala novamente, neste ponto, a contribuição de Lênin, diante do economicismo:
“(…) a filosofia da práxis exclui ou não a historia ético-política, isto é, reconhece ou não a realidade de um momento de hegemonia, dá ou não importância à direção cultural e moral, julga ou não os fatos da superestrutura como ‘aparências’? Pode-se dizer que não só a filosofia da práxis não exclui a história ético-política, como, ao contrário, sua mais recente fase de desenvolvimento consiste precisamente na reivindicação do momento de hegemonia como essencial à sua concepção estatal e à ‘valorização’ do fato cultural, da atividade cultural como necessária, ao lado das frentes meramente econômicas e políticas” (Gramsci, 1981: 219).
Em Gramsci, o enfoque das “ideologias” é um dos mais amplos e profundos no marxismo, assim como o estudo da função dos intelectuais na sociedade. Já se pretendeu que o ponto de vista de Gramsci subvertia as relações que Marx havia verificado entre a base e a superestrutura, passando esta a determinar aquela. Na verdade, Gramsci, mantendo o postulado da filosofia da práxis, combateu as interpretações sobre o pensamento de Marx que, segundo a expressão de Croce, faziam da economia um “Deus oculto” (Gramsci, 1981: 220-221). E, ao mesmo tempo, levou sempre em consideração a unidade material-espiritual que constitui toda formação social, expressa no conceito de “bloco histórico”, ou seja, “unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade dos contrários (…)” (Gramsci, 1968: 12).
Gramsci desenvolve este conceito:
“A afirmação de Croce de que a filosofia da práxis ‘destaca’ a estrutura das superestruturas, recolocando assim em vigor o dualismo teológico e afirmando um ‘deus oculto-estrutura’, não é exata e não é, tampouco, uma invenção muito profunda… Não é verdade que a filosofia da práxis ‘destaque’ a estrutura das superestruturas; ao contrário, ela concebe o desenvolvimento delas como intimamente relacionado e necessariamente inter-relativo e recíproco. Tampouco a estrutura é, nem mesmo por metáfora, comparável a um ‘deus oculto’: ela é concebida de uma maneira ultra-realista, a tal ponto que pode ser estudada com os métodos das ciências naturais e exatas; aliás, precisamente por esta sua ‘consistência’ objetivamente controlável, a concepção da história foi considerada ‘científica’. Será que a estrutura é concebida com algo imóvel e absoluto, ou, pelo contrário, como a própria realidade em movimento? A afirmação das Teses sobre Feuerbach, de que ‘o educador deve ser educado’, não coloca uma relação necessária de reação ativa do homem sobre a estrutura, afirmando a unidade do processo do real? O conceito de ‘bloco histórico’, construído por Sorel, apreende plenamente esta unidade sustentada pela filosofia da práxis.” (Gramsci, 1981: 262-263).
Restabelecida a unidade, é possível distinguir os dois momentos que a constituem. Mas isto implica numa abstração, realizada pelo pensamento e com fins didáticos, de um fenômeno que ocorre, na realidade, de forma indissoluvelmente unida. Assim o explica Gramsci:
“A análise destas afirmações, creio, conduz ao fortalecimento da concepção de ‘bloco histórico’, no qual justamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma – sendo que esta distinção entre forma e conteúdo é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais…” (Gramsci, 1981: 63).
Gramsci procura evitar a simplificação que consiste em “desmascarar” as ideologias, reduzindo-as a “aparências” e as mostra como um poder real que leva os homens a atuar de certa maneira e que se integra na unidade social:
“É necessário, por conseguinte, distinguir entre ideologias historicamente orgânicas, isto é, que são necessárias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalistas, ‘desejadas’. Na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade ‘psicológica’: elas ‘organizam’ as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc… Recordar a freqüente afirmação de Marx sobre a ‘solidez das crenças populares’ como elemento necessário de uma determinada situação. Ele diz mais ou menos isto: ‘quando esta maneira de conceber tiver a força das crenças populares’, etc. outra afirmação de Marx é a de que uma persuasão popular tem, na maioria dos casos, a mesma energia de uma força material (ou algo semelhante), o que é muito significativo” (Gramsci, 1981: 62-63).
Com isto, Gramsci revela a importância política da ideologia e das formas culturais, mas sem reduzi-la a uma mera manifestação imediata do predomínio econômico e social de uma classe e, sim, como a resultante de um esforço permanente desta, que visa à criação de um consenso. Desta forma, em seu pensamento, os momentos da reflexão e da ação, da teoria e da prática, são inseparáveis, de modo que, tão ou mais importante que a criação de formas culturais, é a sua difusão:
“Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas ‘originais’; significa também e, sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, ‘socializá-las’, por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato ‘filosófico’ bem mais importante e ‘original’ do que a descoberta, por parte de um ‘gênio filosófico’, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais” (Gramsci, 1981: 13-14).
Assim, a “ideologia” mostra a sua eficácia na prática, por sua capacidade de organizar a conduta humana.
A concepção gramsciana de política é ampla, não se reduzindo à luta pela conquista do Estado, mas mesmo este já é entendido de forma abrangente: “(…) Estado é todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente justifica e mantém não só o seu domínio, mas consegue obter o consentimento ativo dos governados (…)” (Gramsci, 1968: 87).
Este conceito amplo corresponde à função de hegemonia. Gramsci especifica mais este ponto de vista formulando a idéia de que a supremacia de um grupo social se manifesta em dois momentos: como poder de dominação e como direção intelectual e moral. O primeiro momento corresponde ao Estado, entendido aqui em sentido restrito, e o segundo a hegemonia. Esta separação é de natureza metodológica e não orgânica, pois, na realidade, os dois momentos aparecem em unidade dialética. Tal unidade, que constitui o bloco histórico, é ressaltada por Gramsci quando se utiliza do conceito de Estado, não mais em sentido restrito, mas em sentido integral, abarcando a “ditadura mais a hegemonia”. “Deve-se notar que na noção geral de Estado entram elementos que também são comuns à noção de sociedade civil (neste sentido, poder-se-ia dizer que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida de coerção)” (Gramsci, 1968: 149).
Por outro lado, se a função de dominação/coerção é indispensável, a função de direção também o é, e pode, inclusive, anteceder o momento de dominação. Com relação a esta questão, Gramsci deteve-se particularmente, trazendo contribuições fundamentais no papel dos intelectuais.
“(…) eu amplio muito a noção de intelectual, não me limitando à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Este estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que comumente é entendido como Sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para amoldar a massa popular ao tipo de produção e à economia de dado momento) e não como equilíbrio da Sociedade política com a Sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a sociedade nacional inteira exercida através das chamadas organizações privadas, como a Igreja, os sindicatos, as escolas, etc.), e justamente na sociedade civil em particular operam os intelectuais.” (Gramsci, 1966:.224)
Assim, aos intelectuais estaria reservada a função de construir a homogeneidade de uma classe ou grupo social e o exercício da direção moral e intelectual, não apenas no interior de uma classe, mas para o conjunto da sociedade, na busca da produção e obtenção de consenso. Na perspectiva gramsciana há uma distinção entre dois tipos de intelectuais: os tradicionais e os orgânicos. Os primeiros estão vinculados à determinada classe tradicional remanescente de formação social precedente, que não ocupa uma posição fundamental na nova situação histórica. Denominando de “tradicionais”, Gramsci criticava a filosofia idealista na qual os intelectuais, pela própria concepção da realidade, consideravam-se um grupo à parte do “grupo social dominante”.
“Cada grupo social ‘essencial’, contudo, surgido na história a partir da estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento dessa estrutura econômica, encontrou – pelo menos na história que se desenrolou até nossos dias – categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas” (Gramsci, s/d: 8)
Os intelectuais orgânicos, por outro lado, estão ligados às classes fundamentais da formação social emergente.
“Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo e de modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político (…)” (Gramsci, s/d: 7)
Os intelectuais, contudo, não têm necessariamente a mesma origem social das classes fundamentais que representam. Ou seja, não se definem por sua origem de classe, mas pela posição de classe que assumem, pelo lugar ocupado e pela função que desenvolvem. O intelectual orgânico deve estar diretamente relacionado com a vida prática, deve ser um “persuasor permanente”. O processo de transformação social requer, assim, “intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma sociedade integral” (Gramsci, s/d: 17).
Para Gramsci, uma classe que pretende tornar-se ou manter-se hegemônica deve ter como perspectiva principal, criar seus próprios intelectuais orgânicos e lutar pela conquista ideológica dos intelectuais tradicionais.
“Uma das mais marcantes características de todo grupo social que se desenvolve no sentido do domínio é a sua luta pela assimilação e pela conquista ‘ideológica dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos.” (Gramsci, s/d: 12)
Por outro lado, a organicidade dos intelectuais não deve ser vista como um vínculo imediato com a estrutura econômica. Há uma autonomia relativa dos intelectuais, principalmente os chamados “grandes intelectuais”, com relação às classes fundamentais de que são orgânicos.
“A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre com os grupos sociais fundamentais. Mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários”. Poder-se-ia medir a “organicidade” dos diversos estratos intelectuais, sua mais ou menos estreita conexão com um grupo social fundamental, fixando uma gradação das funções e das superestruturas de baixo para cima (da base estrutural para cima)”. (Gramsci, s/d:13).
Para Gramsci, o intelectual pode ser uma pessoa, um grupo, uma instituição ou uma organização. São todos aqueles que por diferentes motivos pretendem criar condições favoráveis de opinião teórica e prática às suas teses e mantêm posições atuantes nos debates. Os intelectuais como agentes desse processo são, em sentido amplo, definidos como o conjunto daqueles que de alguma maneira desempenham ações na formulação, direção, educação e organização em qualquer esfera da sociedade, e não apenas naquelas tradicionalmente restritas ao mundo intelectual. Assim, por exemplo, os engenheiros estarão sendo considerados aqui como intelectuais, no sentido gramsciano.
“Ampliando” o Estado imperial brasileiro
Poucos são os estudos sobre o Estado Imperial brasileiro que dialogam com as concepções teóricas gramscianas. Talvez não seja coincidência que grande parte da historiografia referente ao Império brasileiro desconsidere a importância do processo de “ampliação” do Estado no Brasil a partir do século XIX. A sociedade civil, quando aparece, deixa de ser um espaço da luta, um momento que Gramsci entendia como integrante do “Estado ampliado”. A incompreensão teórica sobre o nexo entre a sociedade civil e a sociedade política, isto é, sobre o Estado, hegemonia e noção ampliada de intelectual, tem contribuído para difundir uma leitura enviesada da construção do Estado no Brasil.
Apesar das controvérsias historiográficas sobre as características da classe dominante nesse período, é certo que a hegemonia[5] pertencia aos proprietários de terras e de escravos, mais especificamente aos fluminenses, que se fizeram em comunhão com o aparato estatal. A classe dominante do império – formada basicamente por proprietários de terras e de escravos, setores ligados ao complexo agroexportador, comerciantes, negociantes e um conjunto de intelectuais que, juntos, deram a solda necessária para que os interesses de uns se conjugassem aos interesses dos outros – comandava o projeto político e ideológico na formação social brasileira. E, além disto, a classe dominante detinha um papel importante na manutenção e expansão dos seus interesses econômicos pela própria condução dos negócios políticos e administrativos do Estado Imperial. Compondo um bloco no poder[6], cada uma das diversas frações possuía suas especificidades no que diz respeito à posição que ocupava na produção, nos interesses políticos que defendia, em seus aspectos culturais e nas alianças que preferencialmente costurava. No entanto, a natureza desta classe dominante permitia a construção de pontos de coesão que criavam uma identidade reveladora de experiências comuns. Estas experiências propiciavam um reconhecimento entre as frações diante de objetivos comuns e assim construíam alguma identidade de classe.
Ao final dos anos 70 do século XIX, a correlação de forças que sustentava a monarquia brasileira passou a demonstrar sinais de fraqueza e suas atitudes tendiam a um certo isolamento. Avizinhava-se a privação da mão-de-obra escrava e uma desestruturação do modelo econômico. Os novos setores produtivos, surgidos da modernização das atividades econômicas, tinham interesses diversos, o que tornou o processo cada vez mais intrincado.
As reformas implantadas já não eram suficientes para calcificar as fraturas. Aliás, estavam expostas demais e as soluções encontradas só acentuavam as feridas. Os setores médios urbanos mobilizavam-se e as novas frações da classe dominante articulavam-se, buscando alianças que as colocassem em posição de assumir a condução do Estado brasileiro. A crise de hegemonia encontra a crise política. Não sem razão. O ano de 1880 começa com uma revolta popular e termina com a criação do Clube de Engenharia. Sintomas e elementos dessa crise e da ampliação do Estado Imperial brasileiro.
Observando tal complexidade, podemos perceber a importância da ação institucional organizada dos vários grupos sociais articulados a esse processo. No Rio de Janeiro, instalaram-se e atuaram, ao longo da segunda metade do século XIX em diante, diversas organizações da sociedade civil. Várias delas foram decisivas na elaboração de importantes formulações, ao mesmo tempo em que as principais propostas apresentadas revelavam os interesses específicos dos grupos sociais e frações de classe que cada uma representava.
É nesse momento que surge o Clube de Engenharia, fundado em 24 de dezembro de 1880, num sobrado de uma casa comercial da Rua do Ouvidor. Em março do mesmo ano já havia sido fundada a Associação dos Engenheiros no Comércio do Rio de Janeiro, o que demonstra a intenção de se institucionalizar as relações dos engenheiros com outros grupos sociais.
A trajetória do Clube de Engenharia foi construída pela determinação em reunir engenheiros e representantes dos “vários ramos industriais” em torno de objetivos comuns. Sendo uma associação que procurava unir pensamento à ação, desde o seu início demonstrou o firme propósito de associar a engenharia à indústria[7]. Tal união se tornara característica definidora da associação, bem como o maciço contingente desses profissionais entre seus sócios configurou um perfil institucional. Muitos sócios do Clube se autodenominavam “capitalistas”, “proprietários de estabelecimento industrial” ou “negociantes”.
O Clube de Engenharia tinha a tarefa de organização e de representação de interesses dos engenheiros, exercendo influência significativa junto à “sociedade política”, já que seus membros pertenciam às diferentes instâncias de poder, além de representar vários setores da economia nacional, cujas perspectivas já não se coadunavam, no todo, com os do Estado monárquico. Ao longo da última década do século XIX, passando pela década seguinte, o Clube de Engenharia iria se consolidar como uma das principais associações de classe e profissional do Brasil, cuja atuação foi decisiva no processo de transformações daquele período, o que demonstra a capacidade de inscrição de suas formulações junto à sociedade política.
Nesse processo, a administração pública misturava-se aos interesses particulares da classe dominante. A “modernização” do Estado estava intimamente relacionada aos interesses dessas classes que, por sua vez, fortaleciam o poder da administração central. Atuando em conjunto, a atividade dos engenheiros referendava essa ideologia “civilizatória” e de “progresso”.
Desta maneira, torna-se importante destacar os grupos sociais com ligações privilegiadas às atividades urbanas [8], o papel fundamental que exerceram na definição dos rumos políticos e econômicos brasileiros, devido à complexidade de nossa história, que não pode ser limitada a plantation açucareira e cafeeira. A ação desses agentes possibilitou que parte da acumulação mercantil fosse reaplicada aqui mesmo, além da diversificação de suas atividades e a transferência dos negócios urbanos para o investimento em terras. Nas décadas finais do século XIX, parte das fortunas agrárias foi transformada em dinheiro e em apólices públicas[9].
A atuação dentro do campo profissional em formação da engenharia civil esteve, durante a metade final do século XIX, estreitamente ligada à ação política das frações da classe dominante no segundo reinado[10] e, com isso, a influência dos engenheiros junto aos dirigentes da nação foi aumentando consideravelmente. Mesmo diante das mudanças na formação social brasileira e da ascensão de novas frações ao poder, os engenheiros foram mantendo e ampliando sua esfera de influência. O conhecimento desses homens os habilitava a exercer funções em diferentes instâncias de poder. Perceberam a importância de atuar de forma mais decisiva no cenário político, mobilizando-se em prol de alternativas para questões específicas da profissão. Construíram sua base dentro do campo intelectual para que nele fossem definidas as regras para a formação acadêmica, pois isto lhes garantiria a titulação necessária ao exercício da profissão e, também, as regras de atuação dentro do próprio campo.
O campo intelectual[11], do qual os engenheiros brasileiros faziam parte, tomou forma na metade final do século XIX. A reformulação da Escola Central e sua posterior transformação em Politécnica, a fundação de associações profissionais e a publicação de periódicos técnicos especializados são fatores que contribuíram para definir atribuições, dar legitimidade ao grupo e, também, construir alianças com outros grupos sociais. Como observou Sonia Regina de Mendonça:
“… seria de sua autoridade profissional em áreas basicamente relacionadas à modernização técnica, que passaria a derivar-se um novo fundamento para o acesso ao poder, revelando-se sua competitividade no campo político. Semelhante autoridade lhe seria conferida, justamente, pelas instituições responsáveis por sua profissionalização: as Politécnicas. Estas procuravam incutir no futuro profissional o habitus do dirigente no exercício de suas funções, papel legitimado pela peculiaridade de sua formação específica; o engenheiro seria o agente mais apto a dirigir projetos, racionalizar a organização do trabalho e, por seu trato com subalternos, saber mandar.” (Mendonça, 1992).
Na sociedade civil que se aprofundava, a práxis institucional do Clube de Engenharia como “aparelho privado de hegemonia”, consolidava-se definitivamente como a via por excelência de participação e influência do grupo social ali representado [12].
Pensando na estreita relação estabelecida entre engenheiros e grupos representantes da “indústria nacional” e no papel assumido por eles na condução de suas disputas em torno do Estado, vislumbramos a possibilidade de pensar como o Clube de Engenharia assume a função de “partido”, nos moldes em que propõe Gramsci: uma formação ideológica de um grupo social à qual se liga organicamente. Esta classe pode se expressar e se organizar por meio do partido, pois este se apresenta como um instrumento de obtenção/manutenção de poder e é, também, uma forma de disseminar sua concepção do mundo.
Antonio Gramsci distingue duas formas de partido: o político e o ideológico. O partido ideológico está dentro do conjunto dos aparelhos privados de hegemonia – imprensa, círculos, associações, clubes. O partido tende a transformar cada indivíduo em intelectual, mais especificamente em dirigente, ou seja, intelectual capaz de desempenhar sua “função diretiva e organizativa, isto é, educativa ou intelectual”. Ainda segundo Gramsci, esta transformação é função primordial do partido, construindo seus próprios membros mediante “elementos de um grupo social nascido e desenvolvido como ‘econômico’, até transformá-los em intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma sociedade integral, civil e política” (Gramsci, 2000: 349-350).
Gramsci pergunta se “Será necessária a ação política (no sentido estrito) para que se possa falar de “partido”? Observa-se que no mundo moderno, em muitos países, os partidos orgânicos e fundamentais se dividiram, por necessidade de luta ou por qualquer outra razão, em frações que assumiram o nome de “partido” e, inclusive, de partido independente. Por isso, muitas vezes o Estado-Maior intelectual do partido orgânico não pertence a nenhuma das frações, mas opera como se fosse uma força dirigente superior aos partidos e às vezes reconhecida como tal pelo público. Esta função pode ser estudada com maior precisão partindo-se do ponto de vista que um jornal, uma revista, são também eles “partidos”, “frações de partidos” ou “funções de um determinado partido” (Gramsci, 1968: 22-23).
Portanto, no Estado brasileiro que se ampliava ao longo da segunda metade do século XIX, uma das maneiras possíveis de pensar o Clube de Engenharia é como “partido ideológico”, constituído como “intelectual coletivo”. O Clube de Engenharia adotou questões específicas das frações de classe que procurava representar e, ao unificar interesses e difundir visões de mundo, atuou como dirigente, possibilitando a inserção dessas frações em diferentes esferas de poder. Foi responsável pela organização, representação e institucionalização – tanto no âmbito da sociedade civil quanto no da sociedade política – dos interesses de determinados grupos sociais, ao unificar interesses e difundir visões de mundo, atuou como “partido”.
Destacam-se assim, importantes questões advindas da ação institucional dos diversos grupos sociais que se consolidaram com a passagem do século XIX ao XX, que possibilitam pesquisas e análises dos novos grupos profissionais e proprietários que construíam seu locus no “bloco no poder” naquele momento. Com a organização de seus interesses mediante os aparelhos privados de hegemonia, e a pressão por sua inscrição frente a determinados organismos do poder, tenderam a constituir um peso significativo na correlação de forças vigente. Aos poucos, o “Centauro Imperial” tornava-se realidade.
Bibliografia citada
BOURDIEU, Pierre. “Campo intelectual e projeto criador”. In: Jean Pouillion et al. Problemas do Estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
CURY, Vânia Maria. Engenheiros e empresários: o Clube de Engenharia na gestão de Paulo de Frontin (1903-1933). 2000. 358f. Tese. Universidade Federal Fluminense, 2000.
FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
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[12] “Em especial sua cúpula dirigente demonstrou uma consciência plena da necessidade de participar ativamente das arenas políticas, onde se travavam os embates entre os diversos grupos de interesse, que disputavam os recursos públicos para investimento e as esferas de influência para alcançá-los. Sua visão (…) foi tão longe, que chegou a consolidar a posição da instituição como um dos principais interlocutores do poder público em matérias concernentes à infra-estrutura e à engenharia, de maneira geral”. (Cury, 2000).
GRAMSCI PARA HISTORIADORES
Gramsci para historiadores[1]
Ricardo Salles
Escola de História – UNIRIO
Grupo Gramsci e a Modernidade
Esse título é uma alusão ao livro do historiador e psicanalista Peter Gay, Freud para historiadores (GAY, 1989). No caso de Gay, sua tentativa foi a de considerar as possibilidades de utilização de um quadro teórico disciplinar, ou ao menos de um conjunto de seus conceitos, procedimentos, temas e resultados significativos, aquele da psicanálise freudiana, em um outro campo disciplinar, o da História.[2] No caso de Gramsci, argumentarei que seu o esforço intelectual em seus Cadernos do cárcere foi o de desenvolver um quadro teórico, um conjunto de conceitos, procedimentos, buscando obter uma série de resultados significativos, no campo disciplinar da História. Seguirei, nessa colocação, o caminho aberto por Alberto Burgio, em seu Gramsci storico (Gramsci historiador), que considera que os Cadernos do cárcere contêm um grande livro de história da Europa burguesa ou moderna (BURGIO, 2002).
Gramsci historiador
Logo de início, surgem duas questões quando se busca em Gramsci uma obra de história. Em primeiro lugar, não se trata de ignorar que seu esforço intelectual, empreendido entre 1929 e 1935, no cárcere do regime fascista, foi o de um revolucionário, de um militante. Em segundo lugar, é preciso salientar que, dadas as condições em que foi realizado, na prisão, este trabalho foi fragmentado, lacunar e preliminar. Fragmentado porque o escopo de seu interesse intelectual nesse período envolveu uma variedade de temas simultaneamente. É sabido que os Cadernos intercalam temas distintos, tratados como notas, muitas das quais retomadas em segundas anotações. Temas cuja conexão, mesmo quando possa ser intuída, não é dada de antemão aos leitores e possivelmente nem era evidente ao próprio Gramsci. Lacunar porque, como ele mesmo apontou em carta para sua cunhada Tatiana Schucht, de 31 de agosto de 1931, faltavam-lhe as fontes necessárias para aprofundar suas observações (BUTTIGIEG, sd [2010], p. 30). Finalmente, seu trabalho foi preliminar porque, consciente dessas limitações e características, consciente de que a derrota diante do fascismo representava algo mais que um contratempo passageiro e abria todo um novo período histórico, Gramsci considerava suas notas uma etapa inicial para a um trabalho intelectual de maior fôlego, profundidade e alcance.
Para Joseph Buttigieg, o caráter fragmentário das notas de Gramsci seria algo além do que um índice das condições desfavoráveis de sua produção. Em sua importante Introdução à sua edição inglesa dos Cadernos do Cárcere, ele defende que o caráter fragmentário das notas gramscianas derivaria, em larga medida, da centralidade atribuída por Gramsci à História e ao método de uma filologia crítica, em detrimento de uma visão mais sociológica e baseada no materialismo filosófico da filosofia da práxis. A aparente fragmentação representaria o cuidado com o particular, com o detalhe, etc. (BUTTIGIEG, sd [2010], p. 62-4, passim). Esta é uma interpretação possível. Contudo, considero que a ênfase de Gramsci na história, portanto no singular e no contingente, corresponde a uma visão que busca a relação desse contingente com as estruturas, as totalidades. Uma coisa é certa: o trabalho de Gramsci foi uma etapa preparatória para uma obra que ele, infelizmente, nunca pode realizar como queria. Mesmo assim, acabou ficando, e motivando, até hoje, a prática de militantes políticos e sociais, e as reflexões de intelectuais praticamente ao redor do mundo. O que não é pouco.
Mas talvez não seja bom o bastante para nossa tribo dos historiadores acadêmicos no início do século XXI. Afinal, como pode uma obra de história ser realizada contra todos os imperativos da pesquisa acadêmica, diretamente motivada pela vontade de intervir na história? Ainda mais por uma vontade que, ao fim e ao cabo, não obteve sucesso. Como pode trabalho sem pesquisa bibliográfica adequada e, principalmente, sem acesso e consulta às fontes primárias, ser rigorosamente um trabalho de História?
A resposta mais comum a essas indagações tem sido a que, de fato, a obra de Gramsci não é a de um historiador. Essa resposta tem sido dada tanto por intelectuais hostis a Gramsci quanto por aqueles que o admiram ou ao menos o aceitam. No primeiro caso, está uma grande massa de historiadores, mas também de cientistas sociais, que consideram os conceitos, temas e resultados significativos desenvolvidos e obtidos por Gramsci coisas do passado, de um discurso totalizante e superado. No segundo caso, o dos admiradores, em que estão mais os cientistas sociais e menos os historiadores, esses conceitos, temas e resultados significativos são considerados como afeitos a uma outra esfera da prática intelectual que não a da História. Dizem respeito à política, à sociologia, à educação, à filosofia, mas não à História. Podem ser sugestivos, e para alguns até decisivos, mas não são conceitos, temas e resultados de História, enquanto disciplina do conhecimento.
A bem da verdade, para a maioria dos historiadores, tanto os hostis quanto os mais favoráveis a Gramsci, essa não seria uma questão específica a respeito dele, mas concernente a qualquer teoria ou conjunto conceitual em sua relação com a disciplina da História. Reza o senso comum desse campo disciplinar que os historiadores trabalham com a reconstituição descritiva do passado, a partir da pesquisa nas fontes primárias; lidam com o único e o particular, o que aconteceu e não acontecerá mais. Se e quando usam conceitos, tomam-nos emprestado de outras disciplinas e os empregam para empreender essa reconstituição do passado. Procedimento esse que seria contrário do que fariam os cientistas sociais. Segundo Fernando Novais e Rogério da Silva, numa recentíssima antologia sobre a Nova História, os historiadores explicariam para reconstituir e os cientistas sociais reconstituiriam para explicar, para ilustrar uma tipologia ou, no limite, uma teoria (NOVAIS & SILVA, 2011, p. 41). Para esses autores, os historiadores visam a reconstituição dos eventos, do acontecido, por isso singular e total, uma vez que o vivido não pode ser recortado. Nessa tarefa, empregam os conceitos produzidos pelas Ciências Sociais, historicizando-os. Tais conceitos, por sua vez, seriam produzidos a partir dos diferentes recortes efetuados pelas Ciências Sociais no domínio da existência exatamente para produzirem suas teorias e explicações (NOVAIS & SILVA, 2011, p. 40-42, passim).
Esses autores apontam ainda dois pontos importantes, seguindo essa linha de pensamento. O primeiro é que, na mesma época em que as Ciências Sociais consolidavam suas teorias e procedimentos especializados, na primeira metade do século XIX, o marxismo aparecia, buscando exatamente o contrário, um conhecimento total da realidade histórica. Nesse intento, contudo, Marx teria partido da filosofia e não da História, isto é, da prática historiográfica. Essa última seria, na tradição marxista, um lugar de chegada e não de partida (NOVAIS & SILVA, 2011, p. 45). O segundo ponto é que a Nova História, em sua terceira geração,[3] ao propor o abandono dos grandes temas e a redução do “grau de conceitualização para ampliar o nível narrativo-empírico”, se apresentou e se apresenta como uma crítica que pretende superar o marxismo, entendido enquanto uma visão totalizante da história e da prática historiográfica (NOVAIS & SILVA, 2011, p. 50).
Sobre esses pontos, cabem duas observações. Em primeiro lugar, o de que o marxismo surgiu não apenas em paralelo à constituição das Ciências Sociais enquanto disciplinas, mas se apresentou como crítica à principal dessas ciências e disciplinas, aquela que mais se assemelhava, em termos do padrão vigente de cientificidade, às Ciências Naturais: a Economia Política. Mas não apenas isso. O marxismo foi também uma crítica à própria disciplina histórica, tal qual proposta e praticada no tempo de Marx. Isto é uma disciplina que se propunha reconstituir os fatos a partir das fontes legadas pelo passado, salientando, nesses fatos, o papel e as intenções dos indivíduos, especialmente dos grandes indivíduos, buscando tratar dos temas da evolução do espírito, da razão, da civilização, da cultura e das nações.
Em segundo lugar, creio que as colocações de Novais e Silva realizam uma inversão ao apontar para o fato de que a Nova História se apresenta como uma crítica ao marxismo ao privilegiar a constituição de novos temas. Acredito ser o contrário: porque a Nova História incorporou e incorpora, direta ou indiretamente, uma agenda política antimarxista, ela valorizou e valoriza o procedimento metodológico em detrimento do conceitual, o recorte extremo do objeto em detrimento da totalidade. Uma agenda antimarxista não quer dizer necessariamente conservadora, pois, em muitos casos, se tratava, nos anos de 1980, de proceder a uma crítica ao marxismo realmente existente – haveria outro? –, isto é, do marxismo soviético e mesmo do marxismo crítico que, no entanto, pregava a revolução e a ditadura do proletariado, o socialismo como solução para “novas” questões que então se colocavam com maior ênfase na agenda política. Questões como: o meio ambiente, a condição das mulheres, o desarmamento nuclear e a paz, o reconhecimento e o direito das minorias, etc. Entretanto, trinta anos depois, também é possível e necessário perceber que esse movimento intelectual jogou água no moinho do capitalismo realmente existente – há outro? –, isto é, do neoliberalismo, do desmantelamento dos direitos sociais, da crise ambiental, do congelamento e do esvaziamento da democracia, da alienação generalizada, do recrudescimento do imperialismo ocidental, etc.
Um crítico da História Social marxizante desse período, o historiador norte-americano William Sewell, salientou, em trabalho recente, essa conexão entre a Nova História Cultural, com sua crítica e abandono das noções de totalidade e estrutura, e o predomínio de uma visão de mundo neoliberal, assim como a necessidade de retomar essas noções, ainda que em novas bases (SEWELL, 2005, cap. 1 e 2, passim). Nestas condições, seria insensato querer colocar a Nova História entre parêntesis e propor pura e simplesmente uma volta ao marxismo dos anos 1960 e 1970. Tão insensato quanto colocar o marxismo entre parêntesis, ou ficar bradando que ele está morto, como se, assim, se pudesse matá-lo. Para quem quer avançar, é preciso avançar a partir da história e não contra ela.
Voltemos a Gramsci, sobre quem, aliás, Fernando Novais, Rogério Silva e os autores de sua antologia da Nova História não dizem uma só palavra. Infelizmente, porque ― e esse é o ponto central desse ensaio ―, os conceitos e concepções gramscianos foram produzidos diretamente como uma dupla crítica. Por um lado, à ideia de Bukharin, expressa em seu Manual popular de sociologia marxista, de que era possível estabelecer uma Sociologia marxista, no sentido positivo que a concepção vigente e dominante de Sociologia conferia ao termo. Tal ideia nada mais seria, segundo Gramsci, que a expressão vulgar, por isso dotada de um certo valor didático, de um marxismo mecanicista. A crítica de Gramsci a Bukharin é toda no sentido de ressaltar a concepção reflexiva do materialismo marxista de que o real objetivo só existe, isto é, só é concebível, em relação à prática do sujeito que o conhece e transforma, e do caráter histórico, isto é, social, coletivo e relativo, dessa prática. Nesse sentido, rigorosamente, podemos dizer que, para Gramsci, a idéia de que a História pega emprestado, mesmo que historicizando-os, conceitos desenvolvidos em outras disciplinas das Ciências Sociais, a Economia e a Sociologia, por exemplo, soaria como um contra-senso.
Por outro lado, a crítica gramsciana se dirigiu a uma determinada concepção e prática historiográficas, bem como ao historicismo idealista que as embasava. Tratava-se da concepção, da historiografia e da filosofia de Benedetto Croce, este sim, citado na referida introdução e por alguns autores da antologia organizada por Novais e Silva (Braudel, Jacques Le Goff, Pierre Nora, Massimo Mastrogregori e Hayden White). Gramsci se pergunta se o historicismo de Croce não seria “uma forma, habilmente mascarada, de história com uma meta predeterminada [storia a disegno], como é o caso de todas as concepções liberais reformistas” (GRAMSCI, 1999, p. 395). Nesse, como em outros pontos de seu embate com Croce, a crítica gramsciana é filosófica, mas não deixa de lado a prática e os resultados historiográficos desse último, que sofrem inúmeras críticas ao longo dos Cadernos.
O tópico é importante porque, apesar de reconhecer que, antes de tudo, a reflexão gramsciana é política, tanto no sentido de que é a reflexão de um revolucionário, quanto no sentido de suas constantes referências à Ciência Política, gostaria de salientar que tem sido pouco notado que seu empreendimento intelectual é um trabalho de historiador. Trabalho que se dá não apenas como uma teoria da história, enquanto processo histórico coletivo da humanidade, mas, especificamente, como uma teoria da prática da História enquanto disciplina do conhecimento.
Do ponto de vista da relação entre História e Política, isso não é de surpreender em se tratando de um revolucionário. Afinal, a partir de finais do século XVIII, com o advento da “era das revoluções” e da moderna concepção de revolução, Política e História tornaram-se irmãs de um novo tipo. Até então, a irmandade entre Política e História tinha sido marcada pelo signo da experiência do passado e das lições que o conhecimento dessa experiência acumulada propiciava aos grupos dominantes. A História ensinava a prudência, a moderação e os benefícios da ordem. Reflexões sobre a Revolução Francesa, de Burke, marca, em 1790 – portanto antes do Terror de 1792-93, note-se – literalmente, o último momento em que Política e História gozaram de exclusividade e sossego em seu relacionamento. Desde então, a presença tumultuosa da revolução ou de seu fantasma não deixaram mais as duas em paz.
A partir das Treze Colônias, do Haiti, das Guerras de Independência da América ibérica, e, principalmente, da Paris incendiada de 1792-94, as massas ou os grupos sociais subalternos fizeram sua entrada decisiva na história. A Revolução surgiu como um ofício e os revolucionários, como uma nova categoria social do longo século XIX, que adentrou o curto século XX, se não até os nossos dias. Para os revolucionários, o conhecimento da história passou a ser uma das condições para que obtivessem êxito em “fazer a revolução”. Também eles passaram a aprender com a história. Gramsci foi um homem desse tempo e desse ofício. Para ele, o conhecimento histórico era necessário para a construção de uma vontade política coletiva. E esse conhecimento histórico, nos Cadernos do cárcere, segundo Burgio, corresponde a um duplo olhar retrospectivo: “conhecimento dos fatos e compreensão da lógica (das lógicas, elas mesmas historicamente determinadas) do processo” (BURGIO, 2002, p. 5).
E aqui passo a tratar mais diretamente da questão proposta neste ensaio: a relação entre o pensamento gramsciano e a prática historiográfica.
Historicismo
A centralidade do conhecimento histórico em Gramsci derivou, por um lado, do papel preponderante que ele atribuiu à história em relação ao pensamento e à política. Por outro lado, a insistência nas referências à História enquanto disciplina mostra que essa preponderância da história em seu pensamento derivava de seu cuidado com a História-disciplina. Por quê? Talvez Gramsci gostasse da História-disciplina, afinal sua formação era em linguística e mais especificamente numa abordagem histórica da linguística. Mas eu acredito que sua predileção pela História-disciplina tinha a ver com razões de natureza mais filosófica e política. Tinha a ver com o lugar que uma certa cultura histórica estava adquirindo na Itália dos anos 1920 e, especificamente, com os debates historiográficos que se davam em torno da questão do Risorgimento.[4] Tais debates eram correlatos aos enfrentamentos políticos e filosóficos que se davam em torno da questão do Estado, do liberalismo, do comunismo e do fascismo. Mais especificamente, o gosto de Gramsci pela História-disciplina tinha a ver com seu embate com Benedetto Croce que, como grande intelectual, enfeixava tudo isso – política, filosofia, estética e história – numa clara chave anticomunista. Gramsci tinha consciência que esse não era um debate meramente italiano. E ele estava certo. Nessa mesma época, na Espanha e na Alemanha, que se constituíam em uma certa periferia dentro do centro, a revolução proletária estava na ordem do dia e, em breve, lutaria e perderia suas batalhas decisivas. Não por acaso, lá se desenvolviam os pensamentos filosóficos de Ortega y Gasset, de Heidegger. Pensamentos em que concepções de história eram centrais. Todo um tratado poderia ser desenvolvido a partir daqui. Não é a hora, nem o lugar. O importante é entender que não era algo casual, ou meramente derivado de tradições intelectuais, sem dúvida importantes, mas não decisivas, que Gramsci considerasse o marxismo, ou mais precisamente a filosofia da práxis, como um historicismo realista e mesmo como historicismo absoluto.
Esse momento histórico, essa conjuntura decisiva, culminava todo um período da história moderna. No plano das idéias, culminava uma época relativa ao pensamento ocidental do século XIX, inclusive com o advento da sistematização da História enquanto disciplina do conhecimento no contexto da consolidação do Estado moderno, da revolução francesa, da dupla revolução-restauração, ou da revolução passiva, como problemáticas (temas, cânones, diriam Croce e Gramsci). Esses elementos estão presentes, com força, na disciplina histórica em geral, mas mais específica e explicitamente, no historicismo da escola histórica alemã do século XIX. A distinção feita por Rickert entre ciências nomotéticas e ciências idiográficas sintetiza esse movimento (MORERA, 1990, p. 16). Essa distinção, ou elementos dela decorrentes, em larga medida norteia o trabalho dos historiadores ainda hoje.
De acordo com essa concepção, como a história é o reino do singular, do evento e do acaso, ela não conhece as leis da lógica e da necessidade, entendidas como relações invariantes entre eventos. Direta ou indiretamente, daí deriva que a escrita da história diz respeito à reconstrução dos fatos, tal qual eles aconteceram, como queria Ranke. Esses fatos, no entanto, só podem ser plenamente reconstituídos se também o forem as motivações de seus agentes. Motivações que, por sua vez, correspondem aos valores, razões e ideais desses protagonistas. A história diz respeito, assim, ao reino da liberdade e não da necessidade (MORERA, 1990, p. 62). Esse tipo de interpretação, para não ser mera ficção, crônica e mesmo filosofia, tem que estar baseado em regras positivas – assim como é positiva a sua concepção de lei e de lógica – que validem a reconstrução, como verídica e factual, desses fatos , razões e ideais. Por trás dessa concepção, encontra-se, diretamente ou indiretamente, algum tipo de entidade abstrata e imaterial. Sem Deus, a Razão, e, se essa Razão com maiúscula tornou-se ou é considerada muito abstrata, então a razão ou a racionalidade utilitária do mercado, das trocas, materiais, sociais, políticas e simbólicas. Indivíduos racionais, buscando maximizar seus ganhos e minimizar suas perdas, tornam-se os elementos – os sujeitos – invariantes da história. Mesmo quando determinada mentalidade de uma época é percebida em sua singularidade, tal singularidade sobressai em relação à mentalidade racional moderna. Nesse tipo de concepção, indivíduos imersos em uma determinada cultura comportam-se de maneira invariante, buscando estender seus benefícios e minimizar suas perdas. Para isso, buscam alianças, formam redes de relações. Cabe ao historiador reconstituir trajetórias, redes, motivações e intenções. Tais reconstituições são necessariamente recortadas e refeitas de dentro para fora. O ambiente, o contexto, se cria na ação dos agentes. Qualquer tentativa de atribuir ou depreender sentidos abrangentes e preexistentes a essas ações, mesmo que por elas modificados, é vista como teleologia ou determinismo. Tudo começa em si, acaba em si.
Na época de Gramsci e Croce, contudo, essa pulverização da história seria considerada excessiva e, no limite, comprometedora da própria noção de história e da possibilidade de seu conhecimento. O presentismo pós-moderno, ainda que já anunciado aqui e ali, não fora dito em todas suas letras. Nessa época, a história ainda representava um processo, uma acumulação. Para Croce, tal acumulação não se dava no plano material, mas no plano da razão, da moral e da ética, no reino da liberdade. Por isso sua fórmula da história ético-política, da história da Europa como história da liberdade.
Mas o que interessa é que os historicistas, ou como alguns preferem hoje em dia, os historistas, sempre tocaram na questão da transitoriedade de todos os fenômenos históricos. Os eventos do passado aconteceram e não mais acontecerão. Estão perdidos. Não se repetirão. O passado deve ser recriado pelo historiador, que só o faz a partir das idéias e da mentalidade que tem no presente. O ponto de contato que permite que essa recriação não seja completamente arbitrária ou que não se perca num caleidoscópio de traços extraídos das fontes, além dos procedimentos metodológicos adequados, é algum tipo de comunhão – o círculo hermenêutico – que permita a conexão entre presente e passado. Este tipo de comunhão, em que o presente predomina (na fórmula croceana de que “toda história é história contemporânea”) se dá sempre no plano do espírito, seja da razão, seja da moral. Gramsci, ao contrário, considera que a transitoriedade dos fenômenos históricos está sujeita a uma estrutura de necessidades. E aqui, chegamos à diferença e ao Gramsci historiador.
Cânones de interpretação e investigação histórica
A constatação que a correlação entre prática política e prática historiográfica não é apenas uma nota casual dos Cadernos parte das inúmeras e explícitas referências de Gramsci, ao longo deles, a historiadores de seu tempo, à prática disciplinar da historiografia e de suas equiparações e comparações entre prática política e prática historiográfica. Assim, por exemplo, em uma de suas passagens mais conhecidas, ao final da seção 17 do Caderno 13, sobre Maquiavel, intitulada pelo próprio Gramsci, Análise das situações: relações de força, ele considera que quem faz a análise de uma situação conta na situação, a não ser que seja um historiador, preocupado com o passado (GRAMSCI, 2000b, p. 46). O ponto é importante porque mostra a correlação entre prática política e prática historiográfica, partindo de uma concepção filosófica, orientada pela noção marxiana de práxis, umbilicalmente imanentista e reflexiva. Mostra também uma distinção clara, não obstante, entre o que seria uma prática voltada para compreender e criar os fatos, a prática política, e outra, a historiográfica, voltada para compreender e reconstituir os fatos já acontecidos.
Numa e em outra condição, a do político ou a do historiador, há o entendimento de que as situações históricas são, ao mesmo tempo, estruturadas, objetivadas, e contingentes, resultado da ação de sujeitos históricos. Para o Gramsci revolucionário, militante da Internacional Comunista, prisioneiro de um cárcere fascista, admirador da revolução de outubro ― segundo suas palavras, a revolução contra O Capital de Marx ―, entender isso era crucial. Naquela quadra, a história parecia depender, de uma forma complexa e dramática, tanto da ação dos homens – indivíduos, grupos e massas – quanto das tendências estruturais, sociais, econômicas e culturais. A derrota para o fascismo parecia ser mais duradoura e com raízes mais profundas do que queriam seus companheiros da Terceira Internacional. Os rumos sombrios tomados pelo processo de construção do socialismo, a partir das decisões e orientações tomadas pela cúpula soviética, eram justificados por muitos pela inevitabilidade do socialismo, que, se errado aqui e ali, acertaria no longo curso. Voluntarismo e determinismo davam as mãos. Para Gramsci, as tendências estruturais não tinham existência autônoma frente às ações humanas. Eram por elas construídas, modificadas e, eventualmente, destruídas. Os homens, contudo, não faziam a história a partir de suas cabeças, mas exatamente a partir das condições históricas e das tendências em que se encontravam.
Nestas circunstâncias de reflexividade da história, a teoria, como forma de apreensão da realidade complexa, não podia ser uma sociologia positiva, uma elaboração sobre um objeto apartado da ação do sujeito. Para dar conta dessa dimensão da teoria na ação histórica, Gramsci, ao longo de todas as suas anotações, faz uso constante da fórmula “critérios ou cânones de interpretação da história e da política”, ou algo assemelhado. Numa leitura inicial, a expressão aparece pela primeira vez no título da seção 5 do Caderno 4, “Notas sobre filosofia I”, redigido entre 1930 e 1932: “Materialismo histórico e cânones práticos de interpretação da história e da política”. Nesta seção, Gramsci confrontava a situação do marxismo com o que representava o trabalho de Ermest Bernheim para o método histórico.[5] Para ele, o livro de Bernheim não era um tratado de filosofia do historicismo, isto é da filosofia moderna, ainda que estivesse a ela ligado implicitamente:
A “sociologia marxista” (cf. o Ensaio popular) deveria estar para o marxismo como o livro de Bernheim está para o historicismo: um conjunto sistemático de critérios práticos de pesquisa e de interpretação, um dos aspectos do “método filológico” geral. Sob determinado ponto de vista, dever-se-ia fazer, com algumas tendências do materialismo histórico (por ventura as mais difundidas) a mesma crítica que o historicismo fez de fato ao velho método histórico e à velha filologia, que haviam levado a novas formas ingênuas de dogmatismo e substituído a interpretação pela descrição exterior, mais ou menos acurada, dos fenômenos, repetindo sempre: “somos seguidores do método histórico!” (GRAMSCI, 1977, p. 425).[6]
Essa nota foi desdobrada e retomada adiante no Caderno 23 (“Crítica literária”), redigido em 1934, e principalmente no Caderno 16 (“Temas de cultura, 1º”), redigido entre 1933 e 1934. Incluídas essa reescritura, a expressão ou expressões similares aparecem ao longo dos Cadernos pelo menos mais 17 vezes. A última delas no curto, mas fundamental e absolutamente atual, tanto política quanto historiograficamente, Caderno 25, intitulado “Às margens da história. (História dos grupos sociais subalternos)”, redigido em 1934.[7]
Vejamos a primeira referência, na forma que adquiriu em sua versão no Caderno 16.
Seria necessário fazer sobre a filosofia da práxis um trabalho como aquele que Bernheim fez sobre o método histórico (…). O livro de Berheim não é um tratado da filosofia do historicismo, mas a ela está implicitamente ligado. A chamada ‘sociologia da filosofia da práxis’ deveria estar para esta filosofia assim como o livro de Berheim está para o historicismo em geral, ou seja, ser uma exposição sistemática de cânones práticos de investigação e de interpretação sobre a história e a política; uma coletânea de critérios imediatos, de cautelas críticas, etc., uma filologia da história e da política, tal como concebida pela filosofia da práxis. Sob alguns aspectos seria preciso fazer, a propósito de algumas tendências da filosofia da práxis (e porventura as mais difundidas em razão de seu caráter tosco), uma mesma crítica (ou tipo de crítica) que o historicismo moderno fez do velho método histórico e da velha filologia, que haviam levado a formas ingênuas de dogmatismo e substituíam a interpretação e a construção histórica pela descrição exterior e a listagem das fontes primárias, muitas vezes acumuladas desordenadamente e incoerentemente. A força maior destas publicações consistia naquela espécie de misticismo dogmático que se havia criado e popularizado paulatinamente e se expressava na afirmação não justificada de que se era adepto do método histórico e da ciência (GRAMSCI, 2001, p. 23, grifos meus).
O ponto do cânone de interpretação era claramente derivado de Croce e de suas indagações sobre o que seria o materialismo histórico, feitas em um ensaio de 1899 (CROCE, 1948). As indagações de Croce, por sua vez, eram inspiradas em Antonio Labriola. Nesse ensaio, Croce considerava que o materialismo histórico não era mais uma filosofia da história, que lhe atribuiria um significado ou uma explicação transcendentes. O materialismo histórico era mesmo a antítese e a superação de todas as filosofias da história. Também não era uma teoria da História, o que pouco diferiria de uma filosofia da história. Mas tampouco era apenas um método, até porque o método da história já estava estabelecido nos procedimentos dos historiadores de profissão. Croce concluía que o materialismo histórico era um conjunto de temas de interpretação histórica (a economia, as classes sociais, a luta de classes, a relação entre isso, as idéias e os acontecimentos) estabelecidos com Marx a partir de um determinado momento do processo de desenvolvimento histórico. O materialismo histórico representava um “cânone de interpretação histórica” (CROCE, 1948, p. 88).
É difícil subestimar a influência de Croce em Gramsci. No entanto, visões um pouco mais doutrinárias podem levar a esse erro. Pode-se considerar que como Gramsci era um marxista, e que ser um marxista significa isso e aquilo no quadro de uma doutrina estabelecida, tudo devendo ser lido a partir dessa constatação e desse modelo previamente dado, por isso seu engajamento com Croce seria apenas uma fase juvenil e formativa. Inversamente, pode-se aplicar raciocínio semelhante a Croce: como ele era um antimarxista, o marxismo é isso e aquilo e por aí vai…, seu diálogo com o marxismo teria sido somente negativo. Alguns estudiosos chamam a atenção para a importância que Gramsci conferia à crítica de Croce, como principal representante de um pensamento antimarxista e anticomunista. Um pensamento que abria caminho para o fascismo, com o qual Croce flertara.
Isso é importante, mas é só uma parte da questão da relação Gramsci – Croce, em quem o revolucionário comunista via uma significativa contribuição, malgrado o que o próprio Croce considerava, para a filosofia da práxis. Para Gramsci, Croce – o Croce da história ético-política, e não apenas o do ensaio sobre o materialismo histórico – teria incorporado diversos elementos da filosofia da práxis, presentes em seus ensaios da década de 1890 (GRAMSCI, 1999, p. 282), nos quais ele havia sido simpático ao materialismo histórico. Seu acerto de contas posterior com o marxismo não invalidava suas colocações dos ensaios sobre o materialismo histórico e economia marxista, fortemente influenciados por Labriola, para quem, aliás, eram dedicados. Mas não era apenas por isso que Croce era importante. O Croce ético-político era importante na medida em que chamava a atenção “para o estudo dos fatos de cultura e de pensamento como elementos de domínio político, para a função dos grandes intelectuais na vida dos Estados, para o momento da hegemonia como forma necessária do bloco histórico concreto”. Nesse sentido, a história ético-política seria “um dos cânones de interpretação histórica que se deve sempre ter presente no exame e no aprofundamento do desenvolvimento histórico, se é que se quer fazer história integral e não histórias parciais ou extrínsecas” (Idem, p. 283). Retomar e superar Croce era fundamental para realizar a crítica ao “‘economicismo’ e ao mecanicismo fatalista”.
Isso, no entanto, com a condição que o momento ético-político, isto é, o momento da cultura e da hegemonia, não fosse separado do momento da luta e das estruturas que essas haviam gerado.[8] Por isso, discordava de Croce quando este reduzia o marxismo a um puro cânone empírico de interpretação. O que era feito por Croce somente através das negativas de que o marxismo fosse uma filosofia ou uma teoria da História, e, por não ser nada disso, era, então, apenas um cânone empírico de interpretação (GRAMSCI, 1999, p. 345). Em momento algum, Gramsci deixava de lado a dimensão teórica do marxismo, ainda e porque se tratasse de uma teoria histórica. Algumas páginas antes, ele criticava o fato de que Croce terminava por cair “numa nova e estranha forma de ‘sociologismo’ idealista, não menos ridículo e inconclusivo do que o sociologismo positivista” (GRAMSCI, 1999, p. 311). Fazia isso ao reduzir a história a uma dimensão intelectual e conceitual, calcada em grandes intelectuais, que marcaria distintas épocas.
Se é necessário, no perene fluir dos acontecimentos, fixar conceitos, sem os quais a realidade não poderia ser compreendida, deve-se também – aliás, é imprescindível – fixar e recordar que realidade em movimento e conceito da realidade, se podem ser logicamente distinguidos, devem ser concebidos historicamente como unidade inseparável. De outro modo sucede o que sucedeu a Croce, isto é, que a história se torne uma história formal, uma história dos conceitos e, em última análise, uma história dos intelectuais… (Idem).
Evitar o sociologismo idealista, assim como o sociologismo positivista, era uma questão de entender, na tradição marxista, as relações entre infraestrutura e superestruturas.
Estrutura e superestruturas, ou estruturas e acontecimentos
Na seção 38 do já citado Caderno 4, intitulada “Relações entre estrutura e superestruturas”, cujas observações são retomadas no fundamental Caderno 13 sobre Maquiavel, de 1932-34, nas seções 17 e 18 (“Análise das situações: relações de força” e “Alguns aspectos teóricos e práticos do ‘economicismo’”) e no Caderno 10, parte II, de 1932-35, “A filosofia de Benedetto Croce”, na seção 12, as questões e a terminologia “mais ortodoxas” da tradição marxista sobre as relações entre estrutura e superestruturas são mantidas e aprofundadas por Gramsci. A questão é posta como “o problema crucial do materialismo histórico” (GRAMSCI, 1977, p. 455). A esse respeito, segundo Gramsci, haveria dois princípios que haviam sido expostos por Marx no Prefácio à Crítica da Economia Política, de 1859, que deveriam orientar a reflexão: a) o de que nenhuma sociedade se coloca problemas para cuja solução não existam já as condições necessárias e suficientes (ou que não estejam em curso de existência) e; b) o de que nenhuma sociedade desaparece se não se desenvolveram todas as formas de vida que estão implícitas em suas relações. “De tais princípios se podem extrair alguns cânones de metodologia histórica” (GRAMSCI, 1977, p. 455).
Vejamos a interpretação de Gramsci, naquele momento, desse ponto, colhido no texto de 1859. Era necessário distinguir, no estudo de uma estrutura, o permanente e o ocasional. O ocasional seria objeto da crítica – no sentido de análise reveladora do movimento em curso – e do juízo políticos, dos grupos e personalidades políticas. O permanente seria objeto da crítica e do juízo histórico-social, dos grandes agrupamentos socais. No estudo de um período histórico, aparece a grande importância dessa distinção: “…existe uma crise que se prolonga por dezenas de anos. Isto significa que contradições insanáveis se revelaram na estrutura” (GRAMSCI, 1977, p. 455). Contradições que as forças políticas que buscam a preservação desta estrutura:
esforçam-se por sanar, dentro de certos limites; esses esforços incessantes e perseverantes (uma vez que nenhuma forma social jamais confessará ter sido superada) formam o terreno do “ocasional”, sobre o qual se organizam as forças que buscam demonstrar (em última análise, com os fatos, isto é, com seu próprio triunfo, mas imediatamente, com a polêmica ideológica, religiosa, filosófica, política, jurídica, etc.) que “já existem as condições necessárias e suficientes para que determinadas questões possam e devam ser resolvidas historicamente” (GRAMSCI, 1977, p. 455-6).
Aparentemente, se está aqui, e talvez se esteja mesmo, diante de um texto e de uma passagem das mais deterministas e evolucionistas do pensamento marxiano. Texto e passagem que foram, no entanto, cruciais para o desenvolvimento da tradição marxista e do pensamento de Gramsci, no interior dessa tradição. A insistência de Gramsci em voltar ao texto do Prefácio de 1859 ao longo dos Cadernos é um claro sinal de que ele tinha consciência do caráter central e espinhoso dessa passagem. Ela representa sua adesão ao principal problema teórico-metodológico levantado por Marx, e que se estende, a partir dele, quer se queira ou não, para todas as Ciências Sociais, qual seja, o da relação e mesmo oposição entre estrutura e acontecimento, como notou Portantiero (1977, p. 178). Antes de Marx não havia a noção de estrutura, e eu diria, seguindo Gramsci, de uma estrutura imanente, isto é, histórica. Desde o momento em que se considera que as forças materiais e as relações sociais que os homens estabelecem entre si a partir delas e independente de suas vontades – no claro sentido de intencionalidades – são determinantes em sua história, surge imediatamente um problema-questão. Como isso se deu e se dá? Como acontece, em que medida? Longe desse problema-questão ser uma barreira intransponível, ele é a possibilidade mesma do enriquecimento e do alargamento da interpretação histórica.
Usando uma linguagem gramsciana, certamente derivada das “Teses sobre Feuerbach”, de Marx, e da leitura de Marx por Labriola, determinar a relação entre a estrutura e o acontecimento, entre o que é mais permanente e o que é mais ocasional, é uma questão eminentemente prática, histórica, política e transitória. Daí o uso rico do conceito de práxis, derivado de uma leitura de Marx que remonta a Labriola e passa pelo Croce do final da década de 1890. A solução prática da questão estrutura-acontecimento, em política, implica o sucesso ou não dos que interpretam, agem e mais contam para que as tendências estruturais se desenvolvam de uma forma e em uma direção, entre muitas possíveis. Em historiografia, a solução também é prática e mais fácil porque realizada depois dos acontecimentos, resultando da credibilidade e da veracidade das narrativas – significando reconstrução + explicação – de como e por que as coisas se desenvolveram deste e não de outras maneiras. E, neste ponto, fica fácil de entender a filiação de Gramsci a Lênin, para quem o marxismo era antes de tudo a análise concreta da situação concreta.
Esse é o sentido do comentário de Gramsci sobre o Prefácio à Crítica da Economia Política, citado acima. A estrutura não é vista como uma coisa, mas como resultado do processo histórico, fruto da ação humana, em sua dimensão permanente e ocasional. Este processo histórico, por sua vez, diz respeito tanto aos grandes agrupamentos sociais, quanto aos grupos e personalidades políticos que de fato protagonizam, produzem, preservam e modificam o processo. Não há estrutura fora da ação humana. A estrutura não entra em crise e em colapso por si só. Isso depende dos embates políticos. Embates políticos, no entanto, que são estruturados: enquanto os grupos conservadores atuam a partir do permanente, do estabelecido e consolidado, os grupos subalternos – e já veremos a utilização dessa categoria por Gramsci – atuam sobre o terreno do ocasional. A dimensão estrutural de sua ação, isto é, o quanto esta transformará o processo histórico, depende do resultado da luta política, do desenlace de uma situação histórica concreta.
Essa situação concreta, quando a história muda ou permanece, ainda que nunca da mesma maneira, é uma conjuntura determinada em que forças sociais contraditórias se enfrentam. Acompanhemos o gramsciano argentino Juan Carlos Portantiero, que escrevia sobre este ponto na década de 1970, quando o estruturalismo dominava o pensamento social e, portanto, quando a insistência de Gramsci em que o marxismo era um historicismo e um humanismo absolutos dava dores de cabeça àqueles que viam em seu pensamento uma fértil vereda de desenvolvimento para o marxismo. Para Portantiero:
A análise de uma conjuntura não é outra coisa, em Gramsci, que o exame de um feixe de relações contraditórias (relações de força), em cuja combinação particular, um nível delas – as ‘econômicas’ – opera como limite de variação, ‘ou seja, permite controlar o grau de realismo e de possibilidades de diversas ideologias que nasceram (…) que seu desenvolvimento gerou’ (PORTANTIERO, 1977, p. 178).
As situações históricas, fruto das relações de forças seriam, ainda com Portantiero ― aqui claramente ecoando Braudel ―, “um encontro de temporalidades específicas que desembocam em um acontecimento”.[9] O social seria, e Portantiero está seguindo a fórmula exposta por Marx na Introdução à crítica da Economia Política, de 1857, a “síntese de múltiplas determinações”, de relações sociais complexas, dadas em níveis distintos e conexos da realidade, com seus ritmos históricos particulares e não redutíveis. “Entre ‘estrutura’ e acontecimento’, a história não é uma convidada: é a condição de possibilidade para reconstruir o modo particular de articulação das determinações”, o instrumento que possibilita a leitura “tanto o ‘acontecimento’ como a ‘estrutura’, em sua forma ‘conjuntural’, isto é, como ‘momento atual’ das contradições sociais” (Idem, p. 179).[10]
O paralelo entre historiografia e arte política está claro. A “distinção [e eu acrescentaria, acreditando estar sendo fiel ao texto gramsciano, a combinação] entre o que é permanente e o que é ocasional” é o ponto central da análise. “Estes critérios metodológicos podem adquirir visível e didaticamente todo seu significado quando aplicados ao exame dos fatos históricos concretos” (GRAMSCI, 2000b, p. 38, grifos meus). Esta afirmação é seguida, não por acaso, por uma passagem com o exemplo da revolução francesa e da história desse país entre 1789 e 1870. Nesta passagem, Gramsci cita Mathiez e discute como historiadores diversos interpretam “quando” a revolução teria se concluído ou terminado, se em Valmy ou no Termidor; se Napoleão representava a revolução ou a contrarrevolução; se a história da revolução continuaria até 1830, 1848 ou 1870 (Idem, p. 39).
Em todas essas interpretações, haveria uma parte de verdade. As contradições “internas da estrutura francesa, que se desenvolveram depois de 1789, só encontram uma relativa composição com a Terceira República”, quando a França teve uma vida política equilibrada depois sucessivas transformações que se desenvolveram “em ondas cada vez mais longas: 1789, 1794, 1799, 1804, 1815, 1830, 1848, 1870”. No estudo dessas ondas, com diferentes graus de oscilação, estaria a possibilidade de “reconstruir as relações entre estrutura e superestrutura, por um lado, e, por outro, entre o curso do movimento orgânico e o curso do movimento de conjuntura da estrutura” (GRAMSCI, 2000b,p. 39-40).
Aqui, na aquilatação de um grande acontecimento histórico, a revolução francesa, há uma passagem crucial do âmbito da formulação um tanto estática dos princípios e da própria questão da relação entre estrutura e superestrutura em Marx e na tradição marxista para uma formulação radicalmente historicizante. As contradições são internas à estrutura francesa – portanto, históricas, singulares, únicas, ainda que com repercussões externas e com certo caráter “epocal”, como notou, ainda que negativamente, Merquior (1989). A análise é de um período histórico, que pode ter seus limites mais ou menos alargados de acordo com o problema abordado e com a perspectiva de análise. Mas, como se vê pouco adiante, não se trata de abandonar a idéia de estrutura, entendida como conjunto de relações históricas objetivas, dotadas de maior rigidez e duração, que os homens estabelecem entre si e com a natureza no curso de sua história e na produção de suas condições materiais de existência.
Se essas observações podem parecer triviais e essenciais no campo da ciência política e da sociologia, elas não têm trânsito tão fácil entre os historiadores. Como notou John Breuilly, a grande força dos estudos históricos reside em seu foco no particular. O propósito do historiador é sempre conhecer um evento particular (BREUILLY, 1994, p. 1). Essa afirmação, no entanto, envolve uma complexidade que, muitas vezes, escapa ao tipo de história que domina o campo historiográfico atual, com seus objetos recortados e fragmentados. O que se entende por evento particular, ainda de acordo com Breuilly, varia muito: pode ser um incidente em uma batalha ou a história da guerra. Tanto em um caso como no outro, o historiador faz uso de conceitos e termos gerais que lhe permitem definir e classificar os eventos. “Mas, em princípio, tanto a história do mundo quanto a história de um incidente em uma batalha supõem a mesma preocupação com o particular” (BREUILLY, 1994, p. 1).
O ponto agora, a partir do que vimos discutindo e das colocações de Portantiero, é precisar de onde surgem esses termos e conceitos. De um outro campo disciplinar, no qual os historiadores os colhem, historicizando-os? Pode ser, mas não é o suficiente.
Conceitos e termos gerais surgem na história. A observação é importante do ponto de vista gnosiológico. Os conceitos e termos gerais devem ser entendidos, isto é, elaborados, se não somente a partir da prática historiográfica levada a suas últimas consequências, ao menos incorporando a história, o transitório e o singular, enquanto processo real, prático, coletivo e vivido, no coração da reflexão teórica de qualquer das Ciências Sociais. Do ponto de vista de Gramsci, a história é a história dos homens, enquanto processo evolutivo coletivo, geral – isto é, que não começa com cada homem (evento) e não termina com um homem (evento) –, cumulativo, singular e objetivo – o passado não se repete, mas pesa porque existiu – e o futuro, também coletivo, geral, cumulativo e objetivo, é incerto, mas não aleatório. Esse é o ponto de seu entendimento da filosofia da práxis como historicismo absoluto ou, como ele qualificou um pouco mais frequentemente, realista.
Para os historiadores de ofício, a implicação prática de tudo é que o quadro geral de interpretação histórica, e não apenas os conceitos e termos gerais descarnados e desprovidos de historicidade, é, ao mesmo tempo, condição da prática historiográfica e seu resultado.[11] Quadro histórico geral, totalidade, não quer dizer abstração, esquema, modelo. O historiador conhece sempre o singular, não importa tanto se a vida de uma pessoa, de uma nação, de uma região, de uma economia-mundo, sistema-mundo, civilização. No ato de conhecer ele produz, utiliza e traduz, no sentido de transpor, de uma situação e linguagem para outras, reproduzindo-os, conceitos e noções históricas gerais.
Considerar esses conceitos e noções como cânones de interpretação, seguindo Gramsci, significa, antes de tudo, desnaturalizá-los, historicizá-los, testando-os contra as evidências primárias e em relação aos próprios parâmetros de interpretação. Assim, é possível, ou ao menos se tenta, evitar dois erros que Gramsci identifica na historiografia do Risorgimento de sua época: uma história fetichista, diríamos teleológica, que vê no passado, em germe, o que resultou no presente; ou uma história complementar, que ignora a necessidade de sempre problematizar o todo, o quadro geral, que, no fundo, confere inteligibilidade ao que se narra e, dessa, maneira, nunca seria contestado (GRAMSCI, 2002b, p. 34-5).
História dos grupos sociais subalternos
A última referência aos critérios metodológicos aparece, em mais de uma ocasião, no Caderno 25, intitulado “Às margens da história. (História dos grupos sociais subalternos)”. A seção 2, por exemplo, se intitula “Critérios metodológicos”. Ela abre com uma afirmação que será elaborada, ainda que, como sempre, em caráter pontual, ao longo do Caderno: “A história dos grupos sociais subalternos é necessariamente desagregada e episódica”. Gramsci reconhece que na história desses grupos haveria a tendência à unificação, mas que “esta tendência é continuamente rompida pela iniciativa dos grupos dominantes e, portanto, só pode ser demonstrada com o ciclo histórico encerrado, se este se encerra com sucesso” Os grupos subalternos sofreriam sempre a iniciativa dos grupos dominantes. “Na realidade, mesmo quando parecem vitoriosos, os grupos subalternos estão apenas em estado de defesa, sob alerta (pode-se demonstrar esta verdade com a história da Revolução Francesa, pelo menos até 1830)”. E por isso mesmo, considera Gramsci que “todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deve ser de valor inestimável para o historiador integral” (GRAMSCI, 2002b, p. 135). “Historiador integral” remete à ideia de que o historiador evite tanto a história fetichista quanto a história complementar.
O problema da unidade dos grupos subalternos, do Estado e da necessidade histórica (quando as lutas dos grupos subalternos expressam ou impulsionam novas necessidades históricas) é um problema historiográfico e, mais ainda, político atual. Se o problema político da construção e formação de um sujeito histórico coletivo que protagonize a superação do capitalismo histórico na direção de uma sociedade mais igualitária e sustentável é de difícil resolução e, provavelmente, ainda não conta com as condições necessárias e suficientes para seu encaminhamento, se é que um dia contará, no campo historiográfico, há muito que ser feito. É novamente hora, só que agora não mais apenas dos historiadores sociais, mas de todos nós, como já queria Hobsbawm em 1971, alertando contra os perigos das especializações excessivas, de caminharmos em direção à história das sociedades (HOBSBAWM, 1998).
Bibliografia citada
BREUILLY, John. Labour and Liberalism in Nineteenth-Century Europe: Essays in Comparative History. Manchester: Manchester University Press, 1994.
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HOBSBAWM, Eric J. “Da História Social à História das Sociedades”, em Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
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MORERA, Esteve. Gramsci’s Historicism. A Realistic Interpretation. Londres: Routledge, 1990.
NOVAIS, Fernando & SILVA, Rogério. “Introdução”, em Nova História em perspectiva. São Paulo: Cosacnaify, 2011.
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Resumo: Gramsci para historiadores
O ensaio apresenta as reflexões de Antonio Gramsci como um trabalho teórico que, mesmo lidando com a política, trata fundamentalmente com a história e com a prática dos historiadores. Para o pensador e revolucionário italiano, a filosofia da práxis era o historicismo absoluto ou realista. Os conceitos gramscianos, ou cânones metodológicos e de interpretação histórica e política, como ele os considerava, são elaborados a partir de análises de situações e épocas históricas determinadas, notadamente a Itália do século XIX, em particular, e a Europa moderna, de um modo mais amplo. São, nesse sentido, conceitos históricos desenvolvidos para e a partir de uma prática historiográfica. Para afirmar esse ponto, Gramsci se engaja contra dois adversários: o mecanicismo determinista predominante na tradição marxista da Internacional Comunista, exemplificado pelo livro A teoria do materialismo histórico. Manual de sociologia marxista, de Nikolai Buhkarin, e o idealismo filosófico e historiográfico, singularizado em diversos escritos de Benedetto Croce.
Palavras-chave: Antonio Gramsci, filosofia da práxis, historiografia.
Abstract: Gramsci for Historians
The essay presents the reflections of Antonio Gramsci as a theoretical development that, though dealing with Politics, is fundamentally oriented towards History and the historiographical practice. For Gramsci, the philosophy of praxis was the absolute or realistic historicism. The gramscian concepts, or canons of historical and political methodology and interpretation, as he put it, are elaborated from the analysis of historical determined situations and epochs, namely 19th Century Italy, in particular, and Modern Europe, in general. Therefore, they are historical concepts developed for and from a historiographical practice. To assert this point, Gramsci argues against the mechanicism and determinism of the Communist International, exemplified in the The Theory of Historical Materialism. Manual of Marxist Sociology, from Nikolai Bukharin, and the idealism of the philosophical and historiographical writings of Benedetto Croce.
Keywords: Antonio Gramsci, Philosophy of Praxis, Historiography.
[1] Publicado em História da Historiografia, Ouro Preto, n. 10, dezembro de 2012, p. 211-218.
[2] Empregarei, sempre que a distinção me parecer suficientemente clara, o termo História, com maiúscula, para designar a História como disciplina do conhecimento e o termo história, com minúscula, para designar o processo histórico vivenciado e protagonizado pela Humanidade. Entretanto, nem sempre a distinção é simples. O termo filosofia da história, como optei por utilizar, poderia dizer, e, em alguns casos, diz respeito a uma filosofia da História como campo disciplinar. Inversamente, o mesmo ocorre com a expressão teoria da História.
[3] Os autores estão se referindo, genericamente, à geração de historiadores, principalmente franceses, que sucedeu Fernand Braudel a partir da segunda metade da década de 1970.
[4] A expressão foi cunhada no século XIX e designava a necessidade de unificação política da Itália no século XIX com base em identidades culturais e históricas. Posteriormente, passou a designar o conjunto de acontecimentos que redundaram na formação do Estado nacional italiano.
[5] Ernest Bernheim (1860-1942), historiador alemão. Escreveu, em 1889, o Manual do método histórico, que, a partir de 1903, passou a se intitular Manual do método histórico e da filosofia da história. O manual foi publicado em italiano em 1907.
[6] O Ensaio de popular é o livro de Bukharin, A teoria do materialismo histórico. Manual popular de sociologia marxista, de 1921. De acordo com nota ao texto de Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, provavelmente, citava a edição francesa, La théorie du matérialisme historique. Manuel populaire de sociologie marxiste, de 1927 (GRAMSCI, 1999, p. 460-1, Notas ao texto).
[7] A influência desse texto sobre a micro-história italiana não escapou à análise de Henrique Espada Lima, em A micro-história italiana (2006).
[8] História ético-política, como expressão do papel do arbítrio no devir humano em um quadro de evolução cultural e teórica, e não como mero acaso e arbitrariedade, foi a expressão utilizada por Croce para se contrapor, por um lado, ao determinismo mecanicista que ele identificava com o marxismo e, por outro, às visões que não conferiam à história qualquer inteligibilidade racional, como em Nietzsche. Ver a esse respeito ROBERTS (1995).
[9] A relação entre a concepção braudeliana dos diferentes tempos históricos e a concepção gramsciana de momentos da relação de forças é explorada por Esteve Morera (MORERA, 1990, p. 74-132).
[10] Todas as passagens que Portantiero cita são do Caderno 13 sobre Maquiavel (GRAMSCI, 2002b).
[11] Sobre a importância do quadro geral na consciência e na elaboração da prática e do conhecimento históricos, ver Rüsen (2011).
GRAMSCI: EVERYTHING THAT CONCERNS PEOPLE
Gramsci: Everything that Concerns People’ (1987), made for Channel 4 Television (Scotland) by Mike Alexander and Douglas Eadie, with Tom Nairn and Hamish Henderson working as consultants.
Thanks to the International Gramsci Society
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OS JORNAIS E OS OPERÁRIOS
Por Antonio Gramsci
É a época da publicidade para as assinaturas. Os diretores e os administradores dos jornais burgueses arrumam as suas montras, passam uma mão de tinta pela tabuleta e chamam a atenção do passante (isto é, do leitor) para a sua mercadoria. A mercadoria é aquela folha de quatro ou seis páginas que todas as manhãs ou todas as tardes vai injectar no espírito do leitor os modos de sentir e de julgar os factos da actualidade política que mais convêm aos produtores e vendedores de papel impresso. Estamos dispostos a discorrer, com os operários especialmente, sobre a importância e a gravidade daquele acto aparentemente tão inocente que consiste em escolher o jornal que se pretende assinar? É uma escolha cheia de insídias e de perigos que deveria ser feita com consciência, com critério e depois de amadurecida reflexão. Antes de mais nada, o operário deve negar decididamente qualquer solidariedade com o jornal burguês. Deveria recordar-se sempre, sempre, sempre, que o jornal burguês (qualquer que seja a sua cor) é um instrumento de luta movido por ideias e interesses que estão em contraste com os seus. Tudo o que se publica é constantemente influenciado por uma ideia: servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida num facto: combater a classe trabalhadora. E, de facto, da primeira à última linha, o jornal burguês sente e revela esta preocupação. Mas o pior reside nisto: em vez de pedir dinheiro à classe burguesa para o subvencionar a obra de defesa exposta em seu favor, o jornal burguês consegue fazer-se pagar… pela própria classe trabalhadora que ele combate sempre. E a classe trabalhadora paga, pontualmente, generosamente. Centenas de milhares de operários contribuem regularmente todos os dias com seu dinheiro para o jornal burguês, aumentando a sua potência. Porquê? Se perguntarem ao primeiro operário que encontrarem no eléctrico ou na rua, com a folha burguesa desdobrada à sua frente, ouvirão esta resposta: “Porque tenho necessidade de saber o que há de novo.” E não lhe passa sequer pela cabeça que as notícias e os ingredientes com as quais são cozinhadas podem ser expostos com uma arte que dirija o seu pensamento e influa no seu espírito em determinado sentido. E, no entanto, ele sabe que tal jornal é conservador, que outro é interesseiro, que o terceiro, o quarto e quinto estão ligados a grupos políticos que têm interesses diametralmente opostos aos seus. Todos os dias, pois, sucede a este mesmo operário a possibilidade de poder constatar pessoalmente que os jornais burgueses apresentam os factos, mesmo os mais simples, de modo a favorecer a classe burguesa e a política burguesa com prejuízo da política e da classe operária. Rebenta uma greve? Para o jornal burguês os operários nunca têm razão. Há manifestação? Os manifestantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos, facciosos, malfeitores…
O Governo aprova uma lei? É sempre boa, útil e justa, mesmo se… não é verdade. Desenvolve-se uma campanha eleitoral, política ou administrativa? Os candidatos e os programas melhores são sempre os dos partidos burgueses.
E não falemos daqueles casos em que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar, iludir e manter na ignorância o público trabalhador.
Apesar disto, a aquiescência culposa do operário em relação ao jornal burguês é sem limites. É preciso reagir contra ela e despertar o operário para a exacta avaliação da realidade.
É preciso dizer e repetir que a moeda atirada distraidamente para a mão do ardina é um projéctil oferecido ao jornal burguês que o lançará depois, no momento oportuno, contra a massa operária.
Se os operários se persuadissem desta elementaríssima verdade, aprenderiam a boicotar a imprensa burguesa, em bloco e com a mesma disciplina com que a burguesia boicota os jornais operários, isto é, a imprensa socialista.
Não contribuam com dinheiro para a imprensa burguesa que vos é adversária: eis qual deve ser o nosso grito de guerra neste momento, caracterizado pela campanha de assinaturas, feita por todos os jornais burgueses.
Boicotem-nos, boicotem-nos, boicotem-nos!
Artigo não assinado, Avanti!, edição piemontesa, 22-12-1916. In GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos, Lisboa: Seara Nova, 1976, p. 95-97.