O CENTAURO IMPERIAL E O “PARTIDO” DOS ENGENHEIROS

O CENTAURO imperial e o “partido” dos engenheiros: A contribuição das concepções gramscianas para a noção de Estado ampliado no Brasil Império

Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro Marinho

Museu de Astronomia e Ciências Afins / PPGH – UNIRIO

“Quem passa na Avenida, à tarde, ali, no canto dela com a Rua Sete de Setembro, encontra um portão largo, que, em arquitetura, tem um nome especial e duro, cheio de velhos gamenhos, derretidos em sorrisos para as mulheres que passam. Esses velhos aos quais se juntam alguns moços, ainda mais gamenhos, são engenheiros ou cousa parecida, e o lugar, a casa, o portão – tudo isso é o Clube de Engenharia. É uma instituição ainda pior do que a Associação Comercial. É nela que se fazem, se ultimam, se homologam as maiores vergonhas administrativas do Brasil.”                                                                                                            Lima Barreto

Introdução

O objetivo deste trabalho é revisitar algumas formulações gramscianas sobre Estado e, ao mesmo tempo, auxiliar na construção de subsídios teóricos à pesquisa mais ampla, em andamento[2], sobre os engenheiros brasileiros e suas relações de classe ao longo da segunda metade do século XIX.  Foi partindo desta análise historiográfica que o estudo citado está balizado pela concepção de “Estado ampliado”. A partir desta matriz gramsciana, considera-se no Estado imperial não somente seus aparelhos de coerção – que visam e possibilitam uma dominação – mas também sua capacidade de produzir e reproduzir uma direção moral, intelectual e, portanto, cultural. Tal perspectiva ajuda a pensar como os engenheiros brasileiros construíram suas práticas e representações frente aos grupos organizados da sociedade civil a que estavam vinculados e, ainda, o que disputavam e como asseguravam sua presença nas diversas agências do Estado.

Outra importante contribuição ao estudo de agentes deste tipo é a noção de intelectual demarcada por Gramsci. De acordo com Gramsci, a história de um país sempre deve levar em conta a atuação dos intelectuais. Esta visão é fundamental, pois se refere à importância das ideologias e da cultura e, concretamente, a consciência de que todo processo de construção de hegemonia é inviável sem os intelectuais. Assim, os debates ideológicos, culturais, educativos ou científicos mantêm diversos laços com a luta de classes e não podem ser entendidos exclusivamente como um debate epistemológico e profissional entre especialistas. Os agentes deste processo são definidos amplamente como todos aqueles que exercem algum papel de formulação, direção, educação e organização em qualquer esfera da sociedade e não apenas naquelas tradicionalmente restritas ao “mundo das idéias”.

Ao longo da segunda metade do século XIX, as Escolas de Engenharia, o Instituto Politécnico Brasileiro (1862) e, mais tarde, o Clube de Engenharia (1880) desempenharam um papel de destaque no processo dinâmico da formação social brasileira, dado por meio da ascensão social e profissional conseguida graças à formação recebida e ao prestígio que, aos poucos, se fazia sentir do grupo de intelectuais-engenheiros.[3] É, portanto, observando esse contexto histórico que a pesquisa que procuramos desenvolver tem privilegiado a perspectiva organizacional das associações profissionais dos engenheiros e o caráter dinâmico das relações mantidas entre seus integrantes e o Estado imperial brasileiro na metade final do século XIX. Estas associações são analisadas como o locus onde se operou uma mediação profissional e política entre seus agentes e os dirigentes imperiais, constituindo-se em relevantes esferas de negociação e representação. Tal perspectiva possibilita estudar os engenheiros brasileiros como intelectuais em sentido amplo.

As concepções do revolucionário italiano Antônio Gramsci privilegiaram as formas através das quais se assegura o predomínio de um grupo ou fração de classe sobre o conjunto da sociedade nacional inteira, exercido mediante as organizações privadas de hegemonia. O Estado é compreendido como “o organismo próprio de um grupo destinado a criar as condições favoráveis à máxima expansão do próprio grupo” (Gramsci, 2000: 41). O que garante a eficiência desse processo expansivo é não ser identificado como a concretização de interesses exclusivos dos grupos beneficiados, mas como expressão de toda a sociedade.

Uma formação social não consiste apenas num modo de produção garantido coercitivamente pelo “poder do Estado”, mas também em hábitos de vida e pensamento, numa concepção de mundo amplamente difundida pela sociedade na qual se inserem os costumes, a moral, o gosto popular, o folclore, o senso comum e também os princípios filosóficos e religiosos da maioria da população. E é este modo de pensar e agir dos homens e dos governados que se constitui no mais importante suporte da ordem constituída. A “força plena” é uma reserva para os momentos excepcionais, os momentos de crise. Normalmente a hegemonia da classe ou fração de classe dominante se apóia sobre uma complexa combinação de forças políticas, sociais, culturais e em numerosas relações de interdependência, adesão dos governados ao tipo de sociedade em que vivem e sobre o consenso. Gramsci desloca a noção “centáurica”meio homem, meio animal do “Príncipe”, de Maquiavel, para o Estado, denominando-o como instituição composta de força e consenso, de dominação e hegemonia, de violência e civilização. Mas não se trata apenas de uma dualidade justaposta e sim de um processo orgânico complexo, sintetizando o Estado, no conjunto formado pela sociedade política e sociedade civil, em uma noção de “Estado ampliado”.

Gramsci e a “ampliação” do conceito de Estado

Afirmam alguns autores que a pouca operacionalidade das concepções do pensador italiano para estudos sobre o Estado brasileiro resulta do caráter “oriental” da formação social brasileira. Uma sociedade civil “amorfa”, “fraca”, “gelatinosa” ou mesmo “inexistente” e que tal característica seria um traço marcante no Brasil até um passado recente. De imediato, é possível contestar tal assertiva. Para Gramsci, o que é universal é exatamente a capacidade de conhecer concretamente a história específica de uma formação social e, além disso, lembrado por Juan Carlos Portantiero,[4] o próprio Gramsci já havia matizado a noção oriente/ocidente, pensando em “sociedades ocidentais de tipo tardio” ou “ocidente periférico”. Trata-se de assinalar, portanto, a idéia de um processo de ocidentalização que tem a sua historicidade e a complexidade, que pode envolver a simultaneidade de “oriente” e “ocidente”, em uma mesma sociedade. Em uma palavra, é possível pensar o “ocidente” como processo e não apenas como um estágio.

O conceito de Estado, em Gramsci, vem intimamente ligado ao de hegemonia. Gramsci era um político atuante, cujo objetivo era a elaboração de uma nova ordem social e a conquista do poder pelos trabalhadores, mas entendia isso como sendo, antes de tudo, a “criação de uma nova ordem intelectual e moral”:

“Mas, a partir do momento em que um grupo subalterno torna-se realmente autônomo e hegemônico, criando um novo tipo de Estado, nasce concretamente a exigência de construir uma nova ordem intelectual e moral, isto é, um novo tipo de sociedade e, conseqüentemente, a exigência de elaborar os conceitos mais universais, as mais  refinadas e decisivas armas ideológicas.” (Gramsci, 1981: 100).

Para Gramsci, um dos elementos dessa construção é justamente o partido político. Ao partido caberá a “formação de uma vontade coletiva nacional-popular, da qual (…) é ao mesmo tempo o organizador e expressão ativa e atuante” (Gramsci, 1968: 9) e também a missão de preparar a “reforma intelectual e moral” (Gramsci, 1968: 9).

Gramsci procura recuperar para o marxismo a concepção “ético-política” da história, presente em Croce:

“O pensamento de Croce, portanto, deve pelo menos ser considerado como valor instrumental; assim, pode-se dizer que ele chamou energicamente a atenção para a importância dos fatos da cultura e do pensamento no desenvolvimento da história, para a função dos grandes intelectuais na vida orgânica da sociedade civil e do Estado, para o momento da hegemonia e do consenso como forma necessária do bloco histórico concreto” (Gramsci, 1981: 230-231).

Gramsci demonstra que estas questões não eram pouco importantes, tanto assim que figuravam na própria ordem de preocupações de Lênin:

“Que isto não seja ‘fútil’, é o que demonstra o fato de que – contemporaneamente a Croce – o maior teórico moderno da filosofia da práxis, no terreno da luta e da organização política, em oposição às diversas tendências ‘economicistas’, revalorizou a frente da luta cultural e construiu a doutrina da hegemonia como complemento da teoria do Estado-força (…)” (Gramsci, 1981: 231).

O erro de Croce não estava propriamente em analisar o momento ético-político, mas em superestimá-lo, hipertrofiá-lo, em querer construir um modelo histórico puramente ético-político, portanto, especulativo:

“Se é necessário, no perene fluir dos acontecimentos, fixar conceitos, sem os quais a realidade não poderia ser compreendida, deve-se também – aliás, é imprescindível – fixar e recordar que realidade em movimento e conceito da realidade, se podem ser logicamente distinguidos, devem ser concebidos historicamente como unidade inseparável. De outro modo, sucede o que sucedeu a Croce, isto é, a história torna-se uma história formal, uma história de conceitos e, em última análise uma história de intelectuais…” (Gramsci, 1981: 247).

Croce prescindiu “do conceito de bloco histórico, no qual conteúdo econômico-social e forma ético-política se identificam concretamente” (Gramsci, 1981: 233), incorrendo numa “hipóstase arbitrária e mecânica do momento da hegemonia, da direção política, do consenso, na vida e no desenvolvimento da atividade do Estado e da sociedade civil” (Gramsci, 1981: 217). Para Gramsci, a filosofia da práxis não elimina o momento ético, mas o coloca numa justa relação de unidade dialética com a realidade econômico-social e assinala novamente, neste ponto, a contribuição de Lênin, diante do economicismo:

“(…) a filosofia da práxis exclui ou não a historia ético-política, isto é, reconhece ou não a realidade de um momento de hegemonia, dá ou não importância à direção cultural e moral, julga ou não os fatos da superestrutura como ‘aparências’? Pode-se dizer que não só a filosofia da práxis não exclui a história ético-política, como, ao contrário, sua mais recente fase de desenvolvimento consiste precisamente na reivindicação do momento de hegemonia como essencial à sua concepção estatal e à ‘valorização’ do fato cultural, da atividade cultural como necessária, ao lado das frentes meramente econômicas e políticas” (Gramsci, 1981: 219).

Em Gramsci, o enfoque das “ideologias” é um dos mais amplos e profundos no marxismo, assim como o estudo da função dos intelectuais na sociedade. Já se pretendeu que o ponto de vista de Gramsci subvertia as relações que Marx havia verificado entre a base e a superestrutura, passando esta a determinar aquela. Na verdade, Gramsci, mantendo o postulado da filosofia da práxis, combateu as interpretações sobre o pensamento de Marx que, segundo a expressão de Croce, faziam da economia um “Deus oculto” (Gramsci, 1981: 220-221). E, ao mesmo tempo, levou sempre em consideração a unidade material-espiritual que constitui toda formação social, expressa no conceito de “bloco histórico”, ou seja, “unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade dos contrários (…)” (Gramsci, 1968: 12).

Gramsci desenvolve este conceito:

“A afirmação de Croce de que a filosofia da práxis ‘destaca’ a estrutura das superestruturas, recolocando assim em vigor o dualismo teológico e afirmando um ‘deus oculto-estrutura’, não é exata e não é, tampouco, uma invenção muito profunda… Não é verdade que a filosofia da práxis ‘destaque’ a estrutura das superestruturas; ao contrário, ela concebe o desenvolvimento delas como intimamente relacionado e necessariamente inter-relativo e recíproco. Tampouco a estrutura é, nem mesmo por metáfora, comparável a um ‘deus oculto’: ela é concebida de uma maneira ultra-realista, a tal ponto que pode ser estudada com os métodos das ciências naturais e exatas; aliás, precisamente por esta sua ‘consistência’ objetivamente controlável, a concepção da história foi considerada ‘científica’. Será que a estrutura é concebida com algo imóvel e absoluto, ou, pelo contrário, como a própria realidade em movimento? A afirmação das Teses sobre Feuerbach, de que ‘o educador deve ser educado’, não coloca uma relação necessária de reação ativa do homem sobre a estrutura, afirmando a unidade do processo do real? O conceito de ‘bloco histórico’, construído por Sorel, apreende plenamente esta unidade sustentada pela filosofia da práxis.” (Gramsci, 1981: 262-263).

Restabelecida a unidade, é possível distinguir os dois momentos que a constituem. Mas isto implica numa abstração, realizada pelo pensamento e com fins didáticos, de um fenômeno que ocorre, na realidade, de forma indissoluvelmente unida. Assim o explica Gramsci:

“A análise destas afirmações, creio, conduz ao fortalecimento da concepção de ‘bloco histórico’, no qual justamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma – sendo que esta distinção entre forma e conteúdo é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais…” (Gramsci, 1981: 63).

Gramsci procura evitar a simplificação que consiste em “desmascarar” as ideologias, reduzindo-as a “aparências” e as mostra como um poder real que leva os homens a atuar de certa maneira e que se integra na unidade social:

“É necessário, por conseguinte, distinguir entre ideologias historicamente orgânicas, isto é, que são necessárias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalistas, ‘desejadas’. Na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade ‘psicológica’: elas ‘organizam’ as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc… Recordar a freqüente afirmação de Marx sobre a ‘solidez das crenças populares’ como elemento necessário de uma determinada situação. Ele diz mais ou menos isto: ‘quando esta maneira de conceber tiver a força das crenças populares’, etc. outra afirmação de Marx é a de que uma persuasão popular tem, na maioria dos casos, a mesma energia de uma força material (ou algo semelhante), o que é muito significativo” (Gramsci, 1981: 62-63).

Com isto, Gramsci revela a importância política da ideologia e das formas culturais, mas sem reduzi-la a uma mera manifestação imediata do predomínio econômico e social de uma classe e, sim, como a resultante de um esforço permanente desta, que visa à criação de um consenso. Desta forma, em seu pensamento, os momentos da reflexão e da ação, da teoria e da prática, são inseparáveis, de modo que, tão ou mais importante que a criação de formas culturais, é a sua difusão:

“Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas ‘originais’; significa também e, sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, ‘socializá-las’, por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato ‘filosófico’ bem mais importante e ‘original’ do que a descoberta, por parte de um ‘gênio filosófico’, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais” (Gramsci, 1981: 13-14).

Assim, a “ideologia” mostra a sua eficácia na prática, por sua capacidade de organizar a conduta humana.

A concepção gramsciana de política é ampla, não se reduzindo à luta pela conquista do Estado, mas mesmo este já é entendido de forma abrangente: “(…) Estado é todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente justifica e mantém não só o seu domínio, mas consegue obter o consentimento ativo dos governados (…)” (Gramsci, 1968: 87).

Este conceito amplo corresponde à função de hegemonia. Gramsci especifica mais este ponto de vista formulando a idéia de que a supremacia de um grupo social se manifesta em dois momentos: como poder de dominação e como direção intelectual e moral. O primeiro momento corresponde ao Estado, entendido aqui em sentido restrito, e o segundo a hegemonia. Esta separação é de natureza metodológica e não orgânica, pois, na realidade, os dois momentos aparecem em unidade dialética. Tal unidade, que constitui o bloco histórico, é ressaltada por Gramsci quando se utiliza do conceito de Estado, não mais em sentido restrito, mas em sentido integral, abarcando a “ditadura mais a hegemonia”. “Deve-se notar que na noção geral de Estado entram elementos que também são comuns à noção de sociedade civil (neste sentido, poder-se-ia dizer que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida de coerção)” (Gramsci, 1968: 149).

Por outro lado, se a função de dominação/coerção é indispensável, a função de direção também o é, e pode, inclusive, anteceder o momento de dominação. Com relação a esta questão, Gramsci deteve-se particularmente, trazendo contribuições fundamentais no papel dos intelectuais.

“(…) eu amplio muito a noção de intelectual, não me limitando à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Este estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que comumente é entendido como Sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para amoldar a massa popular ao tipo de produção e à economia de dado momento) e não como equilíbrio da Sociedade política com a Sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a sociedade nacional inteira exercida através das chamadas organizações privadas, como a Igreja, os sindicatos, as escolas, etc.), e justamente na sociedade civil em particular operam os intelectuais.” (Gramsci, 1966:.224)

Assim, aos intelectuais estaria reservada a função de construir a homogeneidade de uma classe ou grupo social e o exercício da direção moral e intelectual, não apenas no interior de uma classe, mas para o conjunto da sociedade, na busca da produção e obtenção de consenso. Na perspectiva gramsciana há uma distinção entre dois tipos de intelectuais: os tradicionais e os orgânicos. Os primeiros estão vinculados à determinada classe tradicional remanescente de formação social precedente, que não ocupa uma posição fundamental na nova situação histórica.  Denominando de “tradicionais”, Gramsci criticava a filosofia idealista na qual os intelectuais, pela própria concepção da realidade, consideravam-se um grupo à parte do “grupo social dominante”.

“Cada grupo social ‘essencial’, contudo, surgido na história a partir da estrutura econômica anterior e como expressão do desenvolvimento dessa estrutura econômica, encontrou – pelo menos na história que se desenrolou até nossos dias – categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas” (Gramsci, s/d: 8)

Os intelectuais orgânicos, por outro lado, estão ligados às classes fundamentais da formação social emergente.

“Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo e de modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político (…)” (Gramsci, s/d: 7)

Os intelectuais, contudo, não têm necessariamente a mesma origem social das classes fundamentais que representam. Ou seja, não se definem por sua origem de classe, mas pela posição de classe que assumem, pelo lugar ocupado e pela função que desenvolvem. O intelectual orgânico deve estar diretamente relacionado com a vida prática, deve ser um “persuasor permanente”. O processo de transformação social requer, assim, “intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma sociedade integral” (Gramsci, s/d: 17).

Para Gramsci, uma classe que pretende tornar-se ou manter-se hegemônica deve ter como perspectiva principal, criar seus próprios intelectuais orgânicos e lutar pela conquista ideológica dos intelectuais tradicionais.

“Uma das mais marcantes características de todo grupo social que se desenvolve no sentido do domínio é a sua luta pela assimilação e pela conquista ‘ideológica dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos.” (Gramsci, s/d: 12)

Por outro lado, a organicidade dos intelectuais não deve ser vista como um vínculo imediato com a estrutura econômica. Há uma autonomia relativa dos intelectuais, principalmente os chamados “grandes intelectuais”, com relação às classes fundamentais de que são orgânicos.

“A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre com os grupos sociais fundamentais. Mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários”. Poder-se-ia medir a “organicidade” dos diversos estratos intelectuais, sua mais ou menos estreita conexão com um grupo social fundamental, fixando uma gradação das funções e das superestruturas de baixo para cima (da base estrutural para cima)”. (Gramsci, s/d:13).

Para Gramsci, o intelectual pode ser uma pessoa, um grupo, uma instituição ou uma organização. São todos aqueles que por diferentes motivos pretendem criar condições favoráveis de opinião teórica e prática às suas teses e mantêm posições atuantes nos debates. Os intelectuais como agentes desse processo são, em sentido amplo, definidos como o conjunto daqueles que de alguma maneira desempenham ações na formulação, direção, educação e organização em qualquer esfera da sociedade, e não apenas naquelas tradicionalmente restritas ao mundo intelectual. Assim, por exemplo, os engenheiros estarão sendo considerados aqui como intelectuais, no sentido gramsciano.

“Ampliando” o Estado imperial brasileiro

Poucos são os estudos sobre o Estado Imperial brasileiro que dialogam com as concepções teóricas gramscianas. Talvez não seja coincidência que grande parte da historiografia referente ao Império brasileiro desconsidere a importância do processo de “ampliação” do Estado no Brasil a partir do século XIX. A sociedade civil, quando aparece, deixa de ser um espaço da luta, um momento que Gramsci entendia como integrante do “Estado ampliado”.  A incompreensão teórica sobre o nexo entre a sociedade civil e a sociedade política, isto é, sobre o Estado, hegemonia e noção ampliada de intelectual, tem contribuído para difundir uma leitura enviesada da construção do Estado no Brasil.

Apesar das controvérsias historiográficas sobre as características da classe dominante nesse período, é certo que a hegemonia[5] pertencia aos proprietários de terras e de escravos, mais especificamente aos fluminenses, que se fizeram em comunhão com o aparato estatal. A classe dominante do império – formada basicamente por proprietários de terras e de escravos, setores ligados ao complexo agroexportador, comerciantes, negociantes e um conjunto de intelectuais que, juntos, deram a solda necessária para que os interesses de uns se conjugassem aos interesses dos outros – comandava o projeto político e ideológico na formação social brasileira. E, além disto, a classe dominante detinha um papel importante na manutenção e expansão dos seus interesses econômicos pela própria condução dos negócios políticos e administrativos do Estado Imperial. Compondo um bloco no poder[6], cada uma das diversas frações possuía suas especificidades no que diz respeito à posição que ocupava na produção, nos interesses políticos que defendia, em seus aspectos culturais e nas alianças que preferencialmente costurava. No entanto, a natureza desta classe dominante permitia a construção de pontos de coesão que criavam uma identidade reveladora de experiências comuns. Estas experiências propiciavam um reconhecimento entre as frações diante de objetivos comuns e assim construíam alguma identidade de classe.

Ao final dos anos 70 do século XIX, a correlação de forças que sustentava a monarquia brasileira passou a demonstrar sinais de fraqueza e suas atitudes tendiam a um certo isolamento. Avizinhava-se a privação da mão-de-obra escrava e uma desestruturação do modelo econômico. Os novos setores produtivos, surgidos da modernização das atividades econômicas, tinham interesses diversos, o que tornou o processo cada vez mais intrincado.

As reformas implantadas já não eram suficientes para calcificar as fraturas. Aliás, estavam expostas demais e as soluções encontradas só acentuavam as feridas. Os setores médios urbanos mobilizavam-se e as novas frações da classe dominante articulavam-se, buscando alianças que as colocassem em posição de assumir a condução do Estado brasileiro. A crise de hegemonia encontra a crise política. Não sem razão. O ano de 1880 começa com uma revolta popular e termina com a criação do Clube de Engenharia. Sintomas e elementos dessa crise e da ampliação do Estado Imperial brasileiro.

Observando tal complexidade, podemos perceber a importância da ação institucional organizada dos vários grupos sociais articulados a esse processo. No Rio de Janeiro, instalaram-se e atuaram, ao longo da segunda metade do século XIX em diante, diversas organizações da sociedade civil. Várias delas foram decisivas na elaboração de importantes formulações, ao mesmo tempo em que as principais propostas apresentadas revelavam os interesses específicos dos grupos sociais e frações de classe que cada uma representava.

É nesse momento que surge o Clube de Engenharia, fundado em 24 de dezembro de 1880, num sobrado de uma casa comercial da Rua do Ouvidor. Em março do mesmo ano já havia sido fundada a Associação dos Engenheiros no Comércio do Rio de Janeiro, o que demonstra a intenção de se institucionalizar as relações dos engenheiros com outros grupos sociais.

A trajetória do Clube de Engenharia foi construída pela determinação em reunir engenheiros e representantes dos “vários ramos industriais” em torno de objetivos comuns. Sendo uma associação que procurava unir pensamento à ação, desde o seu início demonstrou o firme propósito de associar a engenharia à indústria[7].  Tal união se tornara característica definidora da associação, bem como o maciço contingente desses profissionais entre seus sócios configurou um perfil institucional. Muitos sócios do Clube se autodenominavam “capitalistas”, “proprietários de estabelecimento industrial” ou “negociantes”.

O Clube de Engenharia tinha a tarefa de organização e de representação de interesses dos engenheiros, exercendo influência significativa junto à “sociedade política”, já que seus membros pertenciam às diferentes instâncias de poder, além de representar vários setores da economia nacional, cujas perspectivas já não se coadunavam, no todo, com os do Estado monárquico. Ao longo da última década do século XIX, passando pela década seguinte, o Clube de Engenharia iria se consolidar como uma das principais associações de classe e profissional do Brasil, cuja atuação foi decisiva no processo de transformações daquele período, o que demonstra a capacidade de inscrição de suas formulações junto à sociedade política.

Nesse processo, a administração pública misturava-se aos interesses particulares da classe dominante. A “modernização” do Estado estava intimamente relacionada aos interesses dessas classes que, por sua vez, fortaleciam o poder da administração central. Atuando em conjunto, a atividade dos engenheiros referendava essa ideologia “civilizatória” e de “progresso”.

Desta maneira, torna-se importante destacar os grupos sociais com ligações privilegiadas às atividades urbanas [8], o papel fundamental que exerceram na definição dos rumos políticos e econômicos brasileiros, devido à complexidade de nossa história, que não pode ser limitada a plantation açucareira e cafeeira. A ação desses agentes possibilitou que parte da acumulação mercantil fosse reaplicada aqui mesmo, além da diversificação de suas atividades e a transferência dos negócios urbanos para o investimento em terras. Nas décadas finais do século XIX, parte das fortunas agrárias foi transformada em dinheiro e em apólices públicas[9].

A atuação dentro do campo profissional em formação da engenharia civil esteve, durante a metade final do século XIX, estreitamente ligada à ação política das frações da classe dominante no segundo reinado[10] e, com isso, a influência dos engenheiros junto aos dirigentes da nação foi aumentando consideravelmente. Mesmo diante das mudanças na formação social brasileira e da ascensão de novas frações ao poder, os engenheiros foram mantendo e ampliando sua esfera de influência. O conhecimento desses homens os habilitava a exercer funções em diferentes instâncias de poder. Perceberam a importância de atuar de forma mais decisiva no cenário político, mobilizando-se em prol de alternativas para questões específicas da profissão. Construíram sua base dentro do campo intelectual para que nele fossem definidas as regras para a formação acadêmica, pois isto lhes garantiria a titulação necessária ao exercício da profissão e, também, as regras de atuação dentro do próprio campo.

O campo intelectual[11], do qual os engenheiros brasileiros faziam parte, tomou forma na metade final do século XIX. A reformulação da Escola Central e sua posterior transformação em Politécnica, a fundação de associações profissionais e a publicação de periódicos técnicos especializados são fatores que contribuíram para definir atribuições, dar legitimidade ao grupo e, também, construir alianças com outros grupos sociais. Como observou Sonia Regina de Mendonça:  

“… seria de sua autoridade profissional em áreas basicamente relacionadas à modernização técnica, que passaria a derivar-se um novo fundamento para o acesso ao poder, revelando-se sua competitividade no campo político. Semelhante autoridade lhe seria conferida, justamente, pelas instituições responsáveis por sua profissionalização: as Politécnicas. Estas procuravam incutir no futuro profissional o habitus do dirigente no exercício de suas funções, papel legitimado pela peculiaridade de sua formação específica; o engenheiro seria o agente mais apto a dirigir projetos, racionalizar a organização do trabalho e, por seu trato com subalternos, saber mandar.” (Mendonça, 1992).

Na sociedade civil que se aprofundava, a práxis institucional do Clube de Engenharia como “aparelho privado de hegemonia”, consolidava-se definitivamente como a via por excelência de participação e influência do grupo social ali representado [12].

Pensando na estreita relação estabelecida entre engenheiros e grupos representantes da “indústria nacional” e no papel assumido por eles na condução de suas disputas em torno do Estado, vislumbramos a possibilidade de pensar como o Clube de Engenharia assume a função de “partido”, nos moldes em que propõe Gramsci: uma formação ideológica de um grupo social à qual se liga organicamente. Esta classe pode se expressar e se organizar por meio do partido, pois este se apresenta como um instrumento de obtenção/manutenção de poder e é, também, uma forma de disseminar sua concepção do mundo.

Antonio Gramsci distingue duas formas de partido: o político e o ideológico. O partido ideológico está dentro do conjunto dos aparelhos privados de hegemonia – imprensa, círculos, associações, clubes. O partido tende a transformar cada indivíduo em intelectual, mais especificamente em dirigente, ou seja, intelectual capaz de desempenhar sua “função diretiva e organizativa, isto é, educativa ou intelectual”. Ainda segundo Gramsci, esta transformação é função primordial do partido, construindo seus próprios membros mediante “elementos de um grupo social nascido e desenvolvido como ‘econômico’, até transformá-los em intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma sociedade integral, civil e política” (Gramsci, 2000: 349-350).

Gramsci pergunta se “Será necessária a ação política (no sentido estrito) para que se possa falar de “partido”? Observa-se que no mundo moderno, em muitos países, os partidos orgânicos e fundamentais se dividiram, por necessidade de luta ou por qualquer outra razão, em frações que assumiram o nome de “partido” e, inclusive, de partido independente. Por isso, muitas vezes o Estado-Maior intelectual do partido orgânico não pertence a nenhuma das frações, mas opera como se fosse uma força dirigente superior aos partidos e às vezes reconhecida como tal pelo público. Esta função pode ser estudada com maior precisão partindo-se do ponto de vista que um jornal, uma revista, são também eles “partidos”, “frações de partidos” ou “funções de um determinado partido” (Gramsci, 1968: 22-23).

Portanto, no Estado brasileiro que se ampliava ao longo da segunda metade do século XIX, uma das maneiras possíveis de pensar o Clube de Engenharia é como “partido ideológico”, constituído como “intelectual coletivo”. O Clube de Engenharia adotou questões específicas das frações de classe que procurava representar e, ao unificar interesses e difundir visões de mundo, atuou como dirigente, possibilitando a inserção dessas frações em diferentes esferas de poder. Foi responsável pela organização, representação e institucionalização – tanto no âmbito da sociedade civil quanto no da sociedade política – dos interesses de determinados grupos sociais, ao unificar interesses e difundir visões de mundo, atuou como “partido”.

Destacam-se assim, importantes questões advindas da ação institucional dos diversos grupos sociais que se consolidaram com a passagem do século XIX ao XX, que possibilitam pesquisas e análises dos novos grupos profissionais e proprietários que construíam seu locus no “bloco no poder” naquele momento. Com a organização de seus interesses mediante os aparelhos privados de hegemonia, e a pressão por sua inscrição frente a determinados organismos do poder, tenderam a constituir um peso significativo na correlação de forças vigente. Aos poucos, o “Centauro Imperial” tornava-se realidade.

Bibliografia citada

BOURDIEU, Pierre. “Campo intelectual e projeto criador”. In: Jean Pouillion et al. Problemas do Estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

CURY, Vânia Maria. Engenheiros e empresários: o Clube de Engenharia na gestão de Paulo de Frontin (1903-1933). 2000. 358f. Tese. Universidade Federal Fluminense, 2000.

FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

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[1] Publicado em MENDONÇA, Sônia (org.). Estado e Historiografia no Brasil. Niterói: EdUFF, 2006, p. 55-70.
[2] Tese de doutorado defendida na UFF com o título: “Ampliando o Estado Imperial: Os engenheiros brasileiros e a organização da cultura no Brasil Oitocentista”.
[3] Na pesquisa em andamento já citada, procuramos abordar como se constituiu historicamente esse grupo, relacionando-o ao momento histórico em que estavam inseridos. Ao estudar os engenheiros como grupo, não se está com isso subestimando as suas diferenças e especificidades. Procura-se integrar no estudo, seus antagonismos, distinções e controvérsias e, ao mesmo tempo, compreende-se a possibilidade de analisá-los como um “movimento político” de elaboração de uma identidade própria, de organização, institucionalização de interesses e construção de um saber específico, cujo desempenho lhes conferia credenciais para o acesso a postos chaves de poder.
[4] (Portantiero, 1977: 68).
[5] Tendo em vista as diversas “leituras” possíveis para a concepção de hegemonia em Gramsci – muitas, inclusive complementares – Thompson cita uma específica ao momento de “direção”: “Por hegemonia, Gramsci parece indicar uma situação sociopolítica (em sua terminologia, um “momento”) em que a filosofia e a prática de uma sociedade se fundem ou estão em equilíbrio, uma ordem em que um certo modo de viver e pensar é dominante, em que um conceito é, de ponta a ponta, difundido em uma sociedade em todas as suas manifestações institucionais e privadas, informando com este espírito todo o gosto, moralidade, costumes, princípios políticos e religiosos e todas as relações sociais, particularmente em sua conotação moral e intelectual, o que implica, por fim, um elemento de direção e controle, não necessariamente consciente”. Apud (Thompson, 2001: 147). É importante destacar que a “hegemonia/direção” tem se configurado, no Brasil, muito mais “(…) de um grupo com referência a seus iguais – ainda que em situações historicamente diferenciadas de disputa e conflito, ao longo do tempo – do que com referência a seus “outros” (não-iguais)…”. (Mendonça, 2002).
[6] Théo Piñeiro, ressaltada a importância de que, em se tratando da classe dominante e Estado no Império Brasileiro, mais apropriado “seria entender a existência de um bloco no poder, […] o que nos permitiria uma apreensão melhor da natureza e a dinâmica desse estado”. (Piñeiro, 2002: 9)
[7] “(…) longe de representar um conceito restrito, ligado à produção fabril, especificamente, a idéia de indústria incorporada ao Clube de Engenharia (…) possuía uma amplitude extraordinária, ligando-se tanto à atividade manufatureira em si, quanto à agricultura, à pecuária e ao extrativismo, de um modo geral, assim como ao comércio, À construção civil e às obras de infra-estrutura.“(…) suas [Clube de Engenharia] concepções abrangentes acerca da “indústria brasileira” diziam respeito a todas as formas de produção e trabalho, nas quais a engenharia pudesse ser efetiva. De fato, o componente decisivo na delimitação desse conceito era o próprio campo de atuação dos engenheiros. (Cury. 2000: 92 e 100).
[8] “Grupos ligados às atividades urbanas, que não podem ser entendidas como meros apêndices da produção escravista para exportação, mas que se integram na lógica de reprodução da economia, principalmente aquelas ligadas à circulação de mercadorias, que se integram às diferentes formas de produção”. (Piñeiro. 2001: 122). Théo Lobarinhas Piñeiro entende Negociante como “o proprietário de capital que, além da esfera da circulação, atua no abastecimento, no financiamento, investe no tráfico de escravos, o que permite que controle setores chaves da economia, inclusive na produção escravista, face ao papel que desempenha no crédito e no fornecimento de mão-de-obra. (…) Atua tanto na atividade comercial, como pode ser encontrado na manufatura, nas casas bancárias, companhias de seguro, bancos, etc”. (Piñeiro. 2001: 124).
[9] Cf. (Fragoso, 1998).
[10] Cf. (Marinho, 2002).
[11] A partir da noção de campo intelectual podemos compreender a dinâmica dos engenheiros: “… é na medida em que faz parte de um campo intelectual em referência ao qual se define e se constitui seu projeto criador, na medida em que, se quisermos, ele é o contemporâneo daqueles com quem se comunica e aos quais se dirige através de sua obra, recorrendo implicitamente a todo um código que possui em comum com eles – temas e problemas na ordem do dia, maneira de pensar, formas de percepção, etc. – que o intelectual é situado histórica e socialmente. Suas escolhas intelectuais ou artísticas as mais conscientes são sempre orientadas por sua cultura e seu gosto, interiorizações da cultura objetiva de uma sociedade, de uma época ou de uma classe”. (Bourdieu. 1968: 136).

[12] “Em especial sua cúpula dirigente demonstrou uma consciência plena da necessidade de participar ativamente das arenas políticas, onde se travavam os embates entre os diversos grupos de interesse, que disputavam os recursos públicos para investimento e as esferas de influência para alcançá-los. Sua visão (…) foi tão longe, que chegou a consolidar a posição da instituição como um dos principais interlocutores do poder público em matérias concernentes à infra-estrutura e à engenharia, de maneira geral”. (Cury, 2000).

GRAMSCI PARA HISTORIADORES

Gramsci para historiadores[1]

Ricardo Salles

Escola de História – UNIRIO

Grupo Gramsci e a Modernidade

 

Esse título é uma alusão ao livro do historiador e psicanalista Peter Gay, Freud para historiadores (GAY, 1989). No caso de Gay, sua tentativa foi a de considerar as possibilidades de utilização de um quadro teórico disciplinar, ou ao menos de um conjunto de seus conceitos, procedimentos, temas e resultados significativos, aquele da psicanálise freudiana, em um outro campo disciplinar, o da História.[2] No caso de Gramsci, argumentarei que seu o esforço intelectual em seus Cadernos do cárcere foi o de desenvolver um quadro teórico, um conjunto de conceitos, procedimentos, buscando obter uma série de resultados significativos, no campo disciplinar da História. Seguirei, nessa colocação, o caminho aberto por Alberto Burgio, em seu Gramsci storico (Gramsci historiador), que considera que os Cadernos do cárcere contêm um grande livro de história da Europa burguesa ou moderna (BURGIO, 2002).

 Gramsci historiador

Logo de início, surgem duas questões quando se busca em Gramsci uma obra de história. Em primeiro lugar, não se trata de ignorar que seu esforço intelectual, empreendido entre 1929 e 1935, no cárcere do regime fascista, foi o de um revolucionário, de um militante. Em segundo lugar, é preciso salientar que, dadas as condições em que foi realizado, na prisão, este trabalho foi fragmentado, lacunar e preliminar. Fragmentado porque o escopo de seu interesse intelectual nesse período envolveu uma variedade de temas simultaneamente. É sabido que os Cadernos intercalam temas distintos, tratados como notas, muitas das quais retomadas em segundas anotações. Temas cuja conexão, mesmo quando possa ser intuída, não é dada de antemão aos leitores e possivelmente nem era evidente ao próprio Gramsci. Lacunar porque, como ele mesmo apontou em carta para sua cunhada Tatiana Schucht, de 31 de agosto de 1931, faltavam-lhe as fontes necessárias para aprofundar suas observações (BUTTIGIEG, sd [2010], p. 30). Finalmente, seu trabalho foi preliminar porque, consciente dessas limitações e características, consciente de que a derrota diante do fascismo representava algo mais que um contratempo passageiro e abria todo um novo período histórico, Gramsci considerava suas notas uma etapa inicial para a um trabalho intelectual de maior fôlego, profundidade e alcance.

Para Joseph Buttigieg, o caráter fragmentário das notas de Gramsci seria algo além do que um índice das condições desfavoráveis de sua produção. Em sua importante Introdução à sua edição inglesa dos Cadernos do Cárcere, ele defende que o caráter fragmentário das notas gramscianas derivaria, em larga medida, da centralidade atribuída por Gramsci à História e ao método de uma filologia crítica, em detrimento de uma visão mais sociológica e baseada no materialismo filosófico da filosofia da práxis. A aparente fragmentação representaria o cuidado com o particular, com o detalhe, etc. (BUTTIGIEG, sd [2010], p. 62-4, passim). Esta é uma interpretação possível. Contudo, considero que a ênfase de Gramsci na história, portanto no singular e no contingente, corresponde a uma visão que busca a relação desse contingente com as estruturas, as totalidades. Uma coisa é certa: o trabalho de Gramsci foi uma etapa preparatória para uma obra que ele, infelizmente, nunca pode realizar como queria. Mesmo assim, acabou ficando, e motivando, até hoje, a prática de militantes políticos e sociais, e as reflexões de intelectuais praticamente ao redor do mundo. O que não é pouco.

Mas talvez não seja bom o bastante para nossa tribo dos historiadores acadêmicos no início do século XXI. Afinal, como pode uma obra de história ser realizada contra todos os imperativos da pesquisa acadêmica, diretamente motivada pela vontade de intervir na história? Ainda mais por uma vontade que, ao fim e ao cabo, não obteve sucesso. Como pode trabalho sem pesquisa bibliográfica adequada e, principalmente, sem acesso e consulta às fontes primárias, ser rigorosamente um trabalho de História?

A resposta mais comum a essas indagações tem sido a que, de fato, a obra de Gramsci não é a de um historiador. Essa resposta tem sido dada tanto por intelectuais hostis a Gramsci quanto por aqueles que o admiram ou ao menos o aceitam. No primeiro caso, está uma grande massa de historiadores, mas também de cientistas sociais, que consideram os conceitos, temas e resultados significativos desenvolvidos e obtidos por Gramsci coisas do passado, de um discurso totalizante e superado. No segundo caso, o dos admiradores, em que estão mais os cientistas sociais e menos os historiadores, esses conceitos, temas e resultados significativos são considerados como afeitos a uma outra esfera da prática intelectual que não a da História. Dizem respeito à política, à sociologia, à educação, à filosofia, mas não à História. Podem ser sugestivos, e para alguns até decisivos, mas não são conceitos, temas e resultados de História, enquanto disciplina do conhecimento.

A bem da verdade, para a maioria dos historiadores, tanto os hostis quanto os mais favoráveis a Gramsci, essa não seria uma questão específica a respeito dele, mas concernente a qualquer teoria ou conjunto conceitual em sua relação com a disciplina da História. Reza o senso comum desse campo disciplinar que os historiadores trabalham com a reconstituição descritiva do passado, a partir da pesquisa nas fontes primárias; lidam com o único e o particular, o que aconteceu e não acontecerá mais. Se e quando usam conceitos, tomam-nos emprestado de outras disciplinas e os empregam para empreender essa reconstituição do passado. Procedimento esse que seria contrário do que fariam os cientistas sociais. Segundo Fernando Novais e Rogério da Silva, numa recentíssima antologia sobre a Nova História, os historiadores explicariam para reconstituir e os cientistas sociais reconstituiriam para explicar, para ilustrar uma tipologia ou, no limite, uma teoria (NOVAIS & SILVA, 2011, p. 41). Para esses autores, os historiadores visam a reconstituição dos eventos, do acontecido, por isso singular e total, uma vez que o vivido não pode ser recortado. Nessa tarefa, empregam os conceitos produzidos pelas Ciências Sociais, historicizando-os. Tais conceitos, por sua vez, seriam produzidos a partir dos diferentes recortes efetuados pelas Ciências Sociais no domínio da existência exatamente para produzirem suas teorias e explicações (NOVAIS & SILVA, 2011, p. 40-42, passim).

Esses autores apontam ainda dois pontos importantes, seguindo essa linha de pensamento. O primeiro é que, na mesma época em que as Ciências Sociais consolidavam suas teorias e procedimentos especializados, na primeira metade do século XIX, o marxismo aparecia, buscando exatamente o contrário, um conhecimento total da realidade histórica. Nesse intento, contudo, Marx teria partido da filosofia e não da História, isto é, da prática historiográfica. Essa última seria, na tradição marxista, um lugar de chegada e não de partida (NOVAIS & SILVA, 2011, p. 45). O segundo ponto é que a Nova História, em sua terceira geração,[3] ao propor o abandono dos grandes temas e a redução do “grau de conceitualização para ampliar o nível narrativo-empírico”, se apresentou e se apresenta como uma crítica que pretende superar o marxismo, entendido enquanto uma visão totalizante da história e da prática historiográfica (NOVAIS & SILVA, 2011, p. 50).

Sobre esses pontos, cabem duas observações. Em primeiro lugar, o de que o marxismo surgiu não apenas em paralelo à constituição das Ciências Sociais enquanto disciplinas, mas se apresentou como crítica à principal dessas ciências e disciplinas, aquela que mais se assemelhava, em termos do padrão vigente de cientificidade, às Ciências Naturais: a Economia Política. Mas não apenas isso. O marxismo foi também uma crítica à própria disciplina histórica, tal qual proposta e praticada no tempo de Marx. Isto é uma disciplina que se propunha reconstituir os fatos a partir das fontes legadas pelo passado, salientando, nesses fatos, o papel e as intenções dos indivíduos, especialmente dos grandes indivíduos, buscando tratar dos temas da evolução do espírito, da razão, da civilização, da cultura e das nações.

Em segundo lugar, creio que as colocações de Novais e Silva realizam uma inversão ao apontar para o fato de que a Nova História se apresenta como uma crítica ao marxismo ao privilegiar a constituição de novos temas. Acredito ser o contrário: porque a Nova História incorporou e incorpora, direta ou indiretamente, uma agenda política antimarxista, ela valorizou e valoriza o procedimento metodológico em detrimento do conceitual, o recorte extremo do objeto em detrimento da totalidade. Uma agenda antimarxista não quer dizer necessariamente conservadora, pois, em muitos casos, se tratava, nos anos de 1980, de proceder a uma crítica ao marxismo realmente existente  – haveria outro? –, isto é, do marxismo soviético e mesmo do marxismo crítico que, no entanto, pregava a revolução e a ditadura do proletariado, o socialismo como solução para “novas” questões que então se colocavam com maior ênfase na agenda política. Questões como: o meio ambiente, a condição das mulheres, o desarmamento nuclear e a paz, o reconhecimento e o direito das minorias, etc. Entretanto, trinta anos depois, também é possível e necessário perceber que esse movimento intelectual jogou água no moinho do capitalismo realmente existente – há outro? –, isto é, do neoliberalismo, do desmantelamento dos direitos sociais, da crise ambiental, do congelamento e do esvaziamento da democracia, da alienação generalizada, do recrudescimento do imperialismo ocidental, etc.

Um crítico da História Social marxizante desse período, o historiador norte-americano William Sewell, salientou, em trabalho recente, essa conexão entre a Nova História Cultural, com sua crítica e abandono das noções de totalidade e estrutura, e o predomínio de uma visão de mundo neoliberal, assim como a necessidade de retomar essas noções, ainda que em novas bases (SEWELL, 2005, cap. 1 e 2, passim). Nestas condições, seria insensato querer colocar a Nova História entre parêntesis e propor pura e simplesmente uma volta ao marxismo dos anos 1960 e 1970. Tão insensato quanto colocar o marxismo entre parêntesis, ou ficar bradando que ele está morto, como se, assim, se pudesse matá-lo. Para quem quer avançar, é preciso avançar a partir da história e não contra ela.

Voltemos a Gramsci, sobre quem, aliás, Fernando Novais, Rogério Silva e os autores de sua antologia da Nova História não dizem uma só palavra. Infelizmente, porque ― e esse é o ponto central desse ensaio ―, os conceitos e concepções gramscianos foram produzidos diretamente como uma dupla crítica. Por um lado, à ideia de Bukharin, expressa em seu Manual popular de sociologia marxista, de que era possível estabelecer uma Sociologia marxista, no sentido positivo que a concepção vigente e dominante de Sociologia conferia ao termo. Tal ideia nada mais seria, segundo Gramsci, que a expressão vulgar, por isso dotada de um certo valor didático, de um marxismo mecanicista. A crítica de Gramsci a Bukharin é toda no sentido de ressaltar a concepção reflexiva do materialismo marxista de que o real objetivo só existe, isto é, só é concebível, em relação à prática do sujeito que o conhece e transforma, e do caráter histórico, isto é, social, coletivo e relativo, dessa prática. Nesse sentido, rigorosamente, podemos dizer que, para Gramsci, a idéia de que a História pega emprestado, mesmo que historicizando-os, conceitos desenvolvidos em outras disciplinas das Ciências Sociais, a Economia e a Sociologia, por exemplo, soaria como um contra-senso.

Por outro lado, a crítica gramsciana se dirigiu a uma determinada concepção e prática historiográficas, bem como ao historicismo idealista que as embasava. Tratava-se da concepção, da historiografia e da filosofia de Benedetto Croce, este sim, citado na referida introdução e por alguns autores da antologia organizada por Novais e Silva (Braudel, Jacques Le Goff, Pierre Nora, Massimo Mastrogregori e Hayden White). Gramsci se pergunta se o historicismo de Croce não seria “uma forma, habilmente mascarada, de história com uma meta predeterminada [storia a disegno], como é o caso de todas as concepções liberais reformistas” (GRAMSCI, 1999, p. 395). Nesse, como em outros pontos de seu embate com Croce, a crítica gramsciana é filosófica, mas não deixa de lado a prática e os resultados historiográficos desse último, que sofrem inúmeras críticas ao longo dos Cadernos.

O tópico é importante porque, apesar de reconhecer que, antes de tudo, a reflexão gramsciana é política, tanto no sentido de que é a reflexão de um revolucionário, quanto no sentido de suas constantes referências à Ciência Política, gostaria de salientar que tem sido pouco notado que seu empreendimento intelectual é um trabalho de historiador. Trabalho que se dá não apenas como uma teoria da história, enquanto processo histórico coletivo da humanidade, mas, especificamente, como uma teoria da prática da História enquanto disciplina do conhecimento.

Do ponto de vista da relação entre História e Política, isso não é de surpreender em se tratando de um revolucionário. Afinal, a partir de finais do século XVIII, com o advento da “era das revoluções” e da moderna concepção de revolução, Política e História tornaram-se irmãs de um novo tipo. Até então, a irmandade entre Política e História tinha sido marcada pelo signo da experiência do passado e das lições que o conhecimento dessa experiência acumulada propiciava aos grupos dominantes. A História ensinava a prudência, a moderação e os benefícios da ordem. Reflexões sobre a Revolução Francesa, de Burke, marca, em 1790 – portanto antes do Terror de 1792-93, note-se – literalmente, o último momento em que Política e História gozaram de exclusividade e sossego em seu relacionamento. Desde então, a presença tumultuosa da revolução ou de seu fantasma não deixaram mais as duas em paz.

A partir das Treze Colônias, do Haiti, das Guerras de Independência da América ibérica, e, principalmente, da Paris incendiada de 1792-94, as massas ou os grupos sociais subalternos fizeram sua entrada decisiva na história. A Revolução surgiu como um ofício e os revolucionários, como uma nova categoria social do longo século XIX, que adentrou o curto século XX, se não até os nossos dias. Para os revolucionários, o conhecimento da história passou a ser uma das condições para que obtivessem êxito em “fazer a revolução”. Também eles passaram a aprender com a história. Gramsci foi um homem desse tempo e desse ofício. Para ele, o conhecimento histórico era necessário para a construção de uma vontade política coletiva. E esse conhecimento histórico, nos Cadernos do cárcere, segundo Burgio, corresponde a um duplo olhar retrospectivo: “conhecimento dos fatos e compreensão da lógica (das lógicas, elas mesmas historicamente determinadas) do processo” (BURGIO, 2002, p. 5).

E aqui passo a tratar mais diretamente da questão proposta neste ensaio: a relação entre o pensamento gramsciano e a prática historiográfica.

Historicismo

A centralidade do conhecimento histórico em Gramsci derivou, por um lado, do papel preponderante que ele atribuiu à história em relação ao pensamento e à política. Por outro lado, a insistência nas referências à História enquanto disciplina mostra que essa preponderância da história em seu pensamento derivava de seu cuidado com a História-disciplina. Por quê? Talvez Gramsci gostasse da História-disciplina, afinal sua formação era em linguística e mais especificamente numa abordagem histórica da linguística. Mas eu acredito que sua predileção pela História-disciplina tinha a ver com razões de natureza mais filosófica e política. Tinha a ver com o lugar que uma certa cultura histórica estava adquirindo na Itália dos anos 1920 e, especificamente, com os debates historiográficos que se davam em torno da questão do Risorgimento.[4] Tais debates eram correlatos aos enfrentamentos políticos e filosóficos que se davam em torno da questão do Estado, do liberalismo, do comunismo e do fascismo. Mais especificamente, o gosto de Gramsci pela História-disciplina tinha a ver com seu embate com Benedetto Croce que, como grande intelectual, enfeixava tudo isso – política, filosofia, estética e história – numa clara chave anticomunista. Gramsci tinha consciência que esse não era um debate meramente italiano. E ele estava certo. Nessa mesma época, na Espanha e na Alemanha, que se constituíam em uma certa periferia dentro do centro, a revolução proletária estava na ordem do dia e, em breve, lutaria e perderia suas batalhas decisivas. Não por acaso, lá se desenvolviam os pensamentos filosóficos de Ortega y Gasset, de Heidegger. Pensamentos em que concepções de história eram centrais. Todo um tratado poderia ser desenvolvido a partir daqui. Não é a hora, nem o lugar. O importante é entender que não era algo casual, ou meramente derivado de tradições intelectuais, sem dúvida importantes, mas não decisivas, que Gramsci considerasse o marxismo, ou mais precisamente a filosofia da práxis, como um historicismo realista e mesmo como historicismo absoluto.

Esse momento histórico, essa conjuntura decisiva, culminava todo um período da história moderna. No plano das idéias, culminava uma época relativa ao pensamento ocidental do século XIX, inclusive com o advento da sistematização da História enquanto disciplina do conhecimento no contexto da consolidação do Estado moderno, da revolução francesa, da dupla revolução-restauração, ou da revolução passiva, como problemáticas (temas, cânones, diriam Croce e Gramsci). Esses elementos estão presentes, com força, na disciplina histórica em geral, mas mais específica e explicitamente, no historicismo da escola histórica alemã do século XIX. A distinção feita por Rickert entre ciências nomotéticas e ciências idiográficas sintetiza esse movimento (MORERA, 1990, p. 16). Essa distinção, ou elementos dela decorrentes, em larga medida norteia o trabalho dos historiadores ainda hoje.

De acordo com essa concepção, como a história é o reino do singular, do evento e do acaso, ela não conhece as leis da lógica e da necessidade, entendidas como relações invariantes entre eventos. Direta ou indiretamente, daí deriva que a escrita da história diz respeito à reconstrução dos fatos, tal qual eles aconteceram, como queria Ranke. Esses fatos, no entanto, só podem ser plenamente reconstituídos se também o forem as motivações de seus agentes. Motivações que, por sua vez, correspondem aos valores, razões e ideais desses protagonistas. A história diz respeito, assim, ao reino da liberdade e não da necessidade (MORERA, 1990, p. 62). Esse tipo de interpretação, para não ser mera ficção, crônica e mesmo filosofia, tem que estar baseado em regras positivas – assim como é positiva a sua concepção de lei e de lógica – que validem a reconstrução, como verídica e factual, desses fatos , razões e ideais. Por trás dessa concepção, encontra-se, diretamente ou indiretamente, algum tipo de entidade abstrata e imaterial. Sem Deus, a Razão, e, se essa Razão com maiúscula tornou-se ou é considerada muito abstrata, então a razão ou a racionalidade utilitária do mercado, das trocas, materiais, sociais, políticas e simbólicas. Indivíduos racionais, buscando maximizar seus ganhos e minimizar suas perdas, tornam-se os elementos – os sujeitos – invariantes da história. Mesmo quando determinada mentalidade de uma época é percebida em sua singularidade, tal singularidade sobressai em relação à mentalidade racional moderna.  Nesse tipo de concepção, indivíduos imersos em uma determinada cultura comportam-se de maneira invariante, buscando estender seus benefícios e minimizar suas perdas. Para isso, buscam alianças, formam redes de relações. Cabe ao historiador reconstituir trajetórias, redes, motivações e intenções. Tais reconstituições são necessariamente recortadas e refeitas de dentro para fora. O ambiente, o contexto, se cria na ação dos agentes. Qualquer tentativa de atribuir ou depreender sentidos abrangentes e preexistentes a essas ações, mesmo que por elas modificados, é vista como teleologia ou determinismo. Tudo começa em si, acaba em si.

Na época de Gramsci e Croce, contudo, essa pulverização da história seria considerada excessiva e, no limite, comprometedora da própria noção de história e da possibilidade de seu conhecimento. O presentismo pós-moderno, ainda que já anunciado aqui e ali, não fora dito em todas suas letras. Nessa época, a história ainda representava um processo, uma acumulação. Para Croce, tal acumulação não se dava no plano material, mas no plano da razão, da moral e da ética, no reino da liberdade. Por isso sua fórmula da história ético-política, da história da Europa como história da liberdade.

Mas o que interessa é que os historicistas, ou como alguns preferem hoje em dia, os historistas, sempre tocaram na questão da transitoriedade de todos os fenômenos históricos. Os eventos do passado aconteceram e não mais acontecerão. Estão perdidos. Não se repetirão. O passado deve ser recriado pelo historiador, que só o faz a partir das idéias e da mentalidade que tem no presente. O ponto de contato que permite que essa recriação não seja completamente arbitrária ou que não se perca num caleidoscópio de traços extraídos das fontes, além dos procedimentos metodológicos adequados, é algum tipo de comunhão – o círculo hermenêutico – que permita a conexão entre presente e passado. Este tipo de comunhão, em que o presente predomina (na fórmula croceana de que “toda história é história contemporânea”) se dá sempre no plano do espírito, seja da razão, seja da moral. Gramsci, ao contrário, considera que a transitoriedade dos fenômenos históricos está sujeita a uma estrutura de necessidades. E aqui, chegamos à diferença e ao Gramsci historiador.

 Cânones de interpretação e investigação histórica

A constatação que a correlação entre prática política e prática historiográfica não é apenas uma nota casual dos Cadernos parte das inúmeras e explícitas referências de Gramsci, ao longo deles, a historiadores de seu tempo, à prática disciplinar da historiografia e de suas equiparações e comparações entre prática política e prática historiográfica. Assim, por exemplo, em uma de suas passagens mais conhecidas, ao final da seção 17 do Caderno 13, sobre Maquiavel, intitulada pelo próprio Gramsci, Análise das situações: relações de força, ele considera que quem faz a análise de uma situação conta na situação, a não ser que seja um historiador, preocupado com o passado (GRAMSCI, 2000b, p. 46). O ponto é importante porque mostra a correlação entre prática política e prática historiográfica, partindo de uma concepção filosófica, orientada pela noção marxiana de práxis, umbilicalmente imanentista e reflexiva. Mostra também uma distinção clara, não obstante, entre o que seria uma prática voltada para compreender e criar os fatos, a prática política, e outra, a historiográfica, voltada para compreender e reconstituir os fatos já acontecidos.

Numa e em outra condição, a do político ou a do historiador, há o entendimento de que as situações históricas são, ao mesmo tempo, estruturadas, objetivadas, e contingentes, resultado da ação de sujeitos históricos. Para o Gramsci revolucionário, militante da Internacional Comunista, prisioneiro de um cárcere fascista, admirador da revolução de outubro ― segundo suas palavras, a revolução contra O Capital de Marx ―, entender isso era crucial. Naquela quadra, a história parecia depender, de uma forma complexa e dramática, tanto da ação dos homens – indivíduos, grupos e massas – quanto das tendências estruturais, sociais, econômicas e culturais. A derrota para o fascismo parecia ser mais duradoura e com raízes mais profundas do que queriam seus companheiros da Terceira Internacional. Os rumos sombrios tomados pelo processo de construção do socialismo, a partir das decisões e orientações tomadas pela cúpula soviética, eram justificados por muitos pela inevitabilidade do socialismo, que, se errado aqui e ali, acertaria no longo curso.  Voluntarismo e determinismo davam as mãos. Para Gramsci, as tendências estruturais não tinham existência autônoma frente às ações humanas. Eram por elas construídas, modificadas e, eventualmente, destruídas. Os homens, contudo, não faziam a história a partir de suas cabeças, mas exatamente a partir das condições históricas e das tendências em que se encontravam.

Nestas circunstâncias de reflexividade da história, a teoria, como forma de apreensão da realidade complexa, não podia ser uma sociologia positiva, uma elaboração sobre um objeto apartado da ação do sujeito. Para dar conta dessa dimensão da teoria na ação histórica, Gramsci, ao longo de todas as suas anotações, faz uso constante da fórmula “critérios ou cânones de interpretação da história e da política”, ou algo assemelhado. Numa leitura inicial, a expressão aparece pela primeira vez no título da seção 5 do Caderno 4, “Notas sobre filosofia I”, redigido entre 1930 e 1932: “Materialismo histórico e cânones práticos de interpretação da história e da política”. Nesta seção, Gramsci confrontava a situação do marxismo com o que representava o trabalho de Ermest Bernheim para o método histórico.[5] Para ele, o livro de Bernheim não era um tratado de filosofia do historicismo, isto é da filosofia moderna, ainda que estivesse a ela ligado implicitamente:

A “sociologia marxista” (cf. o Ensaio popular) deveria estar para o marxismo como o livro de Bernheim está para o historicismo: um conjunto sistemático de critérios práticos de pesquisa e de interpretação, um dos aspectos do “método filológico” geral. Sob determinado ponto de vista, dever-se-ia fazer, com algumas tendências do materialismo histórico (por ventura as mais difundidas) a mesma crítica que o historicismo fez de fato ao velho método histórico e à velha filologia, que haviam levado a novas formas ingênuas de dogmatismo e substituído a interpretação pela descrição exterior, mais ou menos acurada, dos fenômenos, repetindo sempre: “somos seguidores do método histórico!” (GRAMSCI, 1977, p. 425).[6]

Essa nota foi desdobrada e retomada adiante no Caderno 23 (“Crítica literária”), redigido em 1934, e principalmente no Caderno 16 (“Temas de cultura, 1º”), redigido entre 1933 e 1934. Incluídas essa reescritura, a expressão ou expressões similares aparecem ao longo dos Cadernos pelo menos mais 17 vezes. A última delas no curto, mas fundamental e absolutamente atual, tanto política quanto historiograficamente, Caderno 25, intitulado “Às margens da história. (História dos grupos sociais subalternos)”, redigido em 1934.[7]

Vejamos a primeira referência, na forma que adquiriu em sua versão no Caderno 16.

Seria necessário fazer sobre a filosofia da práxis um trabalho como aquele que Bernheim fez sobre o método histórico (…). O livro de Berheim não é um tratado da filosofia do historicismo, mas a ela está implicitamente ligado. A chamada ‘sociologia da filosofia da práxis’ deveria estar para esta filosofia assim como o livro de Berheim está para o historicismo em geral, ou seja, ser uma exposição sistemática de cânones práticos de investigação e de interpretação sobre a história e a política; uma coletânea de critérios imediatos, de cautelas críticas, etc., uma filologia da história e da política, tal como concebida pela filosofia da práxis. Sob alguns aspectos seria preciso fazer, a propósito de algumas tendências da filosofia da práxis (e porventura as mais difundidas em razão de seu caráter tosco), uma mesma crítica (ou tipo de crítica) que o historicismo moderno fez do velho método histórico e da velha filologia, que haviam levado a formas ingênuas de dogmatismo e substituíam a interpretação e a construção histórica pela descrição exterior e a listagem das fontes primárias, muitas vezes acumuladas desordenadamente e incoerentemente. A força maior destas publicações consistia naquela espécie de misticismo dogmático que se havia criado e popularizado paulatinamente e se expressava na afirmação não justificada de que se era adepto do método histórico e da ciência (GRAMSCI, 2001, p. 23, grifos meus).

O ponto do cânone de interpretação era claramente derivado de Croce e de suas indagações sobre o que seria o materialismo histórico, feitas em um ensaio de 1899 (CROCE, 1948). As indagações de Croce, por sua vez, eram inspiradas em Antonio Labriola. Nesse ensaio, Croce considerava que o materialismo histórico não era mais uma filosofia da história, que lhe atribuiria um significado ou uma explicação transcendentes. O materialismo histórico era mesmo a antítese e a superação de todas as filosofias da história. Também não era uma teoria da História, o que pouco diferiria de uma filosofia da história. Mas tampouco era apenas um método, até porque o método da história já estava estabelecido nos procedimentos dos historiadores de profissão. Croce concluía que o materialismo histórico era um conjunto de temas de interpretação histórica (a economia, as classes sociais, a luta de classes, a relação entre isso, as idéias e os acontecimentos) estabelecidos com Marx a partir de um determinado momento do processo de desenvolvimento histórico. O materialismo histórico representava um “cânone de interpretação histórica” (CROCE, 1948, p. 88).

É difícil subestimar a influência de Croce em Gramsci. No entanto, visões um pouco mais doutrinárias podem levar a esse erro. Pode-se considerar que como Gramsci era um marxista, e que ser um marxista significa isso e aquilo no quadro de uma doutrina estabelecida, tudo devendo ser lido a partir dessa constatação e desse modelo previamente dado, por isso seu engajamento com Croce seria apenas uma fase juvenil e formativa.  Inversamente, pode-se aplicar raciocínio semelhante a Croce: como ele era um antimarxista, o marxismo é isso e aquilo e por aí vai…, seu diálogo com o marxismo teria sido somente negativo. Alguns estudiosos chamam a atenção para a importância que Gramsci conferia à crítica de Croce, como principal representante de um pensamento antimarxista e anticomunista. Um pensamento que abria caminho para o fascismo, com o qual Croce flertara.

Isso é importante, mas é só uma parte da questão da relação Gramsci – Croce, em quem o revolucionário comunista via uma significativa contribuição, malgrado o que o próprio Croce considerava, para a filosofia da práxis. Para Gramsci, Croce – o Croce da história ético-política, e não apenas o do ensaio sobre o materialismo histórico – teria incorporado diversos elementos da filosofia da práxis, presentes em seus ensaios da década de 1890 (GRAMSCI, 1999, p. 282), nos quais ele havia sido simpático ao materialismo histórico. Seu acerto de contas posterior com o marxismo não invalidava suas colocações dos ensaios sobre o materialismo histórico e economia marxista, fortemente influenciados por Labriola, para quem, aliás, eram dedicados. Mas não era apenas por isso que Croce era importante. O Croce ético-político era importante na medida em que chamava a atenção “para o estudo dos fatos de cultura e de pensamento como elementos de domínio político, para a função dos grandes intelectuais na vida dos Estados, para o momento da hegemonia como forma necessária do bloco histórico concreto”. Nesse sentido, a história ético-política seria “um dos cânones de interpretação histórica que se deve sempre ter presente no exame e no aprofundamento do desenvolvimento histórico, se é que se quer fazer história integral e não histórias parciais ou extrínsecas” (Idem, p. 283). Retomar e superar Croce era fundamental para realizar a crítica ao “‘economicismo’ e ao mecanicismo fatalista”.

Isso, no entanto, com a condição que o momento ético-político, isto é, o momento da cultura e da hegemonia, não fosse separado do momento da luta e das estruturas que essas haviam gerado.[8] Por isso, discordava de Croce quando este reduzia o marxismo a um puro cânone empírico de interpretação. O que era feito por Croce somente através das negativas de que o marxismo fosse uma filosofia ou uma teoria da História, e, por não ser nada disso, era, então, apenas um cânone empírico de interpretação (GRAMSCI, 1999, p. 345). Em momento algum, Gramsci deixava de lado a dimensão teórica do marxismo, ainda e porque se tratasse de uma teoria histórica. Algumas páginas antes, ele criticava o fato de que Croce terminava por cair “numa nova e estranha forma de ‘sociologismo’ idealista, não menos ridículo e inconclusivo do que o sociologismo positivista” (GRAMSCI, 1999, p. 311). Fazia isso ao reduzir a história a uma dimensão intelectual e conceitual, calcada em grandes intelectuais, que marcaria distintas épocas.

Se é necessário, no perene fluir dos acontecimentos, fixar conceitos, sem os quais a realidade não poderia ser compreendida, deve-se também – aliás, é imprescindível – fixar e recordar que realidade em movimento e conceito da realidade, se podem ser logicamente distinguidos, devem ser concebidos historicamente como unidade inseparável. De outro modo sucede o que sucedeu a Croce, isto é, que a história se torne uma história formal, uma história dos conceitos e, em última análise, uma história dos intelectuais… (Idem).

Evitar o sociologismo idealista, assim como o sociologismo positivista, era uma questão de entender, na tradição marxista, as relações entre infraestrutura e superestruturas.

Estrutura e superestruturas, ou estruturas e acontecimentos

Na seção 38 do já citado Caderno 4, intitulada  “Relações entre estrutura e superestruturas”, cujas observações são retomadas no fundamental Caderno 13 sobre Maquiavel, de 1932-34, nas seções 17 e 18 (“Análise das situações: relações de força” e “Alguns aspectos teóricos e práticos do ‘economicismo’”) e no Caderno 10, parte II, de 1932-35, “A filosofia de Benedetto Croce”, na seção 12, as questões e a terminologia “mais ortodoxas” da tradição marxista sobre as relações entre estrutura e superestruturas são mantidas e aprofundadas por Gramsci. A questão é posta como “o problema crucial do materialismo histórico” (GRAMSCI, 1977, p. 455). A esse respeito, segundo Gramsci, haveria dois princípios que haviam sido expostos por Marx no Prefácio à Crítica da Economia Política, de 1859, que deveriam orientar a reflexão: a) o de que nenhuma sociedade se coloca problemas para cuja solução não existam já as condições necessárias e suficientes (ou que não estejam em curso de existência) e; b) o de que nenhuma sociedade desaparece se não se desenvolveram todas as formas de vida que estão implícitas em suas relações. “De tais princípios se podem extrair alguns cânones de metodologia histórica” (GRAMSCI, 1977, p. 455).

Vejamos a interpretação de Gramsci, naquele momento, desse ponto, colhido no texto de  1859. Era necessário distinguir, no estudo de uma estrutura, o permanente e o  ocasional. O ocasional seria objeto da crítica – no sentido de análise reveladora do movimento em curso – e do juízo políticos, dos grupos e personalidades políticas. O permanente seria objeto da crítica e do juízo histórico-social, dos grandes agrupamentos socais. No estudo de um período histórico, aparece a grande importância dessa distinção: “…existe uma crise que se prolonga por dezenas de anos. Isto significa que contradições insanáveis se revelaram na estrutura” (GRAMSCI, 1977, p. 455). Contradições que as forças políticas que buscam a preservação desta estrutura:

esforçam-se por sanar, dentro de certos limites; esses esforços incessantes e perseverantes (uma vez que nenhuma forma social jamais confessará ter sido superada) formam o terreno do “ocasional”, sobre o qual se organizam as forças que buscam  demonstrar (em última análise, com os fatos, isto é, com seu próprio triunfo, mas imediatamente, com a polêmica ideológica, religiosa, filosófica, política, jurídica, etc.) que “já existem as condições necessárias e suficientes para que determinadas questões possam e devam ser resolvidas historicamente” (GRAMSCI, 1977, p. 455-6).

Aparentemente, se está aqui, e talvez se esteja mesmo, diante de um texto e de uma passagem das mais deterministas e evolucionistas do pensamento marxiano. Texto e passagem que foram, no entanto, cruciais para o desenvolvimento da tradição marxista e do pensamento de Gramsci, no interior dessa tradição. A insistência de Gramsci em voltar ao texto do Prefácio de 1859 ao longo dos Cadernos é um claro sinal de que ele tinha consciência do caráter central e espinhoso dessa passagem. Ela representa sua adesão ao principal problema teórico-metodológico levantado por Marx, e que se estende, a partir dele, quer se queira ou não, para todas as Ciências Sociais, qual seja, o da relação e mesmo oposição entre estrutura e acontecimento, como notou Portantiero (1977, p. 178). Antes de Marx não havia a noção de estrutura, e eu diria, seguindo Gramsci, de uma estrutura imanente, isto é, histórica. Desde o momento em que se considera que as forças materiais e as relações sociais que os homens estabelecem entre si a partir delas e independente de suas vontades – no claro sentido de intencionalidades – são determinantes em sua história, surge imediatamente um problema-questão. Como isso se deu e se dá? Como acontece, em que medida? Longe desse problema-questão ser uma barreira intransponível, ele é a possibilidade mesma do enriquecimento e do alargamento da interpretação histórica.

Usando uma linguagem gramsciana, certamente derivada das “Teses sobre Feuerbach”, de Marx, e da leitura de Marx por Labriola, determinar a relação entre a estrutura e o acontecimento, entre o que é mais permanente e o que é mais ocasional, é uma questão eminentemente prática, histórica, política e transitória. Daí o uso rico do conceito de práxis, derivado de uma leitura de Marx que remonta a Labriola e passa pelo Croce do final da década de 1890. A solução prática da questão estrutura-acontecimento, em política, implica o sucesso ou não dos que interpretam, agem e mais contam para que as tendências estruturais se desenvolvam de uma forma e em uma direção, entre muitas possíveis. Em historiografia, a solução também é prática e mais fácil porque realizada depois dos acontecimentos, resultando da credibilidade e da veracidade das narrativas – significando reconstrução + explicação – de como e por que as coisas se desenvolveram deste e não de outras maneiras. E, neste ponto, fica fácil de entender a filiação de Gramsci a Lênin, para quem o marxismo era antes de tudo a análise concreta da situação concreta.

Esse é o sentido do comentário de Gramsci sobre o Prefácio à Crítica da Economia Política, citado acima. A estrutura não é vista como uma coisa, mas como resultado do processo histórico, fruto da ação humana, em sua dimensão permanente e ocasional. Este processo histórico, por sua vez, diz respeito tanto aos grandes agrupamentos sociais, quanto aos grupos e personalidades políticos que de fato protagonizam, produzem, preservam e modificam o processo. Não há estrutura fora da ação humana. A estrutura não entra em crise e em colapso por si só. Isso depende dos embates políticos. Embates políticos, no entanto, que são estruturados: enquanto os grupos conservadores atuam a partir do permanente, do estabelecido e consolidado, os grupos subalternos – e já veremos a utilização dessa categoria por Gramsci – atuam sobre o terreno do ocasional. A dimensão estrutural de sua ação, isto é, o quanto esta transformará o processo histórico, depende do resultado da luta política, do desenlace de uma situação histórica concreta.

Essa situação concreta, quando a história muda ou permanece, ainda que nunca da mesma maneira, é uma conjuntura determinada em que forças sociais contraditórias se enfrentam. Acompanhemos o gramsciano argentino Juan Carlos Portantiero, que escrevia sobre este ponto na década de 1970, quando o estruturalismo dominava o pensamento social e, portanto, quando a insistência de Gramsci em que o marxismo era um historicismo e um humanismo absolutos dava dores de cabeça àqueles que viam em seu pensamento uma fértil vereda de desenvolvimento para o marxismo. Para Portantiero:

 A análise de uma conjuntura não é outra coisa, em Gramsci, que o exame de um feixe de relações contraditórias (relações de força), em cuja combinação particular, um nível delas – as ‘econômicas’ – opera como limite de variação, ‘ou seja, permite controlar o grau de realismo e de possibilidades de diversas ideologias que nasceram (…) que seu desenvolvimento gerou’ (PORTANTIERO, 1977, p. 178).

As situações históricas, fruto das relações de forças seriam, ainda com Portantiero ― aqui claramente ecoando Braudel ―, “um encontro de temporalidades específicas que desembocam em um acontecimento”.[9] O social seria, e Portantiero está seguindo a fórmula exposta por Marx na Introdução à crítica da Economia Política, de 1857, a “síntese de múltiplas determinações”, de relações sociais complexas, dadas em níveis distintos e conexos da realidade, com seus ritmos históricos particulares e não redutíveis. “Entre ‘estrutura’ e acontecimento’, a história não é uma convidada: é a condição de possibilidade para reconstruir o modo particular de articulação das determinações”, o instrumento que possibilita a leitura “tanto o ‘acontecimento’ como a ‘estrutura’, em sua forma ‘conjuntural’, isto é, como ‘momento atual’ das contradições sociais” (Idem, p. 179).[10]

O paralelo entre historiografia e arte política está claro. A “distinção  [e eu acrescentaria, acreditando estar sendo fiel ao texto gramsciano, a combinação] entre o que é permanente e o que é ocasional” é o ponto central da análise. “Estes critérios metodológicos podem adquirir visível e didaticamente todo seu significado quando aplicados ao exame dos fatos históricos concretos” (GRAMSCI, 2000b, p. 38, grifos meus). Esta afirmação é seguida, não por acaso, por uma passagem com o exemplo da revolução francesa e da história desse país entre 1789 e 1870. Nesta passagem, Gramsci cita Mathiez e discute como historiadores diversos interpretam “quando” a revolução teria se concluído ou terminado, se em Valmy ou no Termidor; se Napoleão representava a revolução ou a contrarrevolução; se a história da revolução continuaria até 1830, 1848 ou 1870 (Idem, p. 39).

Em todas essas interpretações, haveria uma parte de verdade. As contradições “internas da estrutura francesa, que se desenvolveram depois de 1789, só encontram uma relativa composição com a Terceira República”, quando a França teve uma vida política equilibrada depois sucessivas transformações que se desenvolveram “em ondas cada vez mais longas: 1789, 1794, 1799, 1804, 1815, 1830, 1848, 1870”. No estudo dessas ondas, com diferentes graus de oscilação, estaria a possibilidade de “reconstruir as relações entre estrutura e superestrutura, por um lado, e, por outro, entre o curso do movimento orgânico e o curso do movimento de conjuntura da estrutura” (GRAMSCI, 2000b,p. 39-40).

Aqui, na aquilatação de um grande acontecimento histórico, a revolução francesa, há uma passagem crucial do âmbito da formulação um tanto estática dos princípios e da própria questão da relação entre estrutura e superestrutura em Marx e na tradição marxista para uma formulação radicalmente historicizante. As contradições são internas à estrutura francesa – portanto, históricas, singulares, únicas, ainda que com repercussões externas e com certo caráter “epocal”, como notou, ainda que negativamente, Merquior (1989). A análise é de um período histórico, que pode ter seus limites mais ou menos alargados de acordo com o problema abordado e com a perspectiva de análise. Mas, como se vê pouco adiante, não se trata de abandonar a idéia de estrutura, entendida como conjunto de relações históricas objetivas, dotadas de maior rigidez e duração, que os homens estabelecem entre si e com a natureza no curso de sua história e na produção de suas condições materiais de existência.

Se essas observações podem parecer triviais e essenciais no campo da ciência política e da sociologia, elas não têm trânsito tão fácil entre os historiadores. Como notou John Breuilly, a grande força dos estudos históricos reside em seu foco no particular. O propósito do historiador é sempre conhecer um evento particular (BREUILLY, 1994, p. 1). Essa afirmação, no entanto, envolve uma complexidade que, muitas vezes, escapa ao tipo de história que domina o campo historiográfico atual, com seus objetos recortados e fragmentados. O que se entende por evento particular, ainda de acordo com Breuilly, varia muito: pode ser um incidente em uma batalha ou a história da guerra. Tanto em um caso como no outro, o historiador faz uso de conceitos e termos gerais que lhe permitem definir e classificar os eventos. “Mas, em princípio, tanto a história do mundo quanto a história de um incidente em uma batalha supõem a mesma preocupação com o particular” (BREUILLY, 1994, p. 1).

O ponto agora, a partir do que vimos discutindo e das colocações de Portantiero, é precisar de onde surgem esses termos e conceitos. De um outro campo disciplinar, no qual os historiadores os colhem, historicizando-os? Pode ser, mas não é o suficiente.

Conceitos e termos gerais surgem na história. A observação é importante do ponto de vista gnosiológico. Os conceitos e termos gerais devem ser entendidos, isto é, elaborados, se não somente a partir da prática historiográfica levada a suas últimas consequências, ao menos incorporando a história, o transitório e o singular, enquanto processo real, prático, coletivo e vivido, no coração da reflexão teórica de qualquer das Ciências Sociais. Do ponto de vista de Gramsci, a história é a história dos homens, enquanto processo evolutivo coletivo, geral – isto é, que não começa com cada homem (evento) e não termina com um homem (evento) –, cumulativo, singular e objetivo – o passado não se repete, mas pesa porque existiu – e o futuro, também coletivo, geral, cumulativo e objetivo, é incerto, mas não aleatório. Esse é o ponto de seu entendimento da filosofia da práxis como historicismo absoluto ou, como ele qualificou um pouco mais frequentemente, realista.

Para os historiadores de ofício, a implicação prática de tudo é que o quadro geral de interpretação histórica, e não apenas os conceitos e termos gerais descarnados e desprovidos de historicidade, é, ao mesmo tempo, condição da prática historiográfica e seu resultado.[11] Quadro histórico geral, totalidade, não quer dizer abstração, esquema, modelo. O historiador conhece sempre o singular, não importa tanto se a vida de uma pessoa, de uma nação, de uma região, de uma economia-mundo, sistema-mundo, civilização. No ato de conhecer ele produz, utiliza e traduz, no sentido de transpor, de uma situação e linguagem para outras, reproduzindo-os, conceitos e noções históricas gerais.

Considerar esses conceitos e noções como cânones de interpretação, seguindo Gramsci, significa, antes de tudo, desnaturalizá-los, historicizá-los, testando-os contra as evidências primárias e em relação aos próprios parâmetros de interpretação. Assim, é possível, ou ao menos se tenta, evitar dois erros que Gramsci identifica na historiografia do Risorgimento de sua época: uma história fetichista, diríamos teleológica, que vê no passado, em germe, o que resultou no presente; ou uma história complementar, que ignora a necessidade de sempre problematizar o todo, o quadro geral, que, no fundo, confere inteligibilidade ao que se narra e, dessa, maneira, nunca seria contestado (GRAMSCI, 2002b, p. 34-5).

História dos grupos sociais subalternos

A última referência aos critérios metodológicos aparece, em mais de uma ocasião, no Caderno 25, intitulado “Às margens da história. (História dos grupos sociais subalternos)”. A seção 2, por exemplo, se intitula “Critérios metodológicos”. Ela abre com uma afirmação que será elaborada, ainda que, como sempre, em caráter pontual, ao longo do Caderno: “A história dos grupos sociais subalternos é necessariamente desagregada e episódica”. Gramsci reconhece que na história desses grupos haveria a tendência à unificação, mas que “esta tendência é continuamente rompida pela iniciativa dos grupos dominantes e, portanto, só pode ser demonstrada com o ciclo histórico encerrado, se este se encerra com sucesso” Os grupos subalternos sofreriam sempre a iniciativa dos grupos dominantes. “Na realidade, mesmo quando parecem vitoriosos, os grupos subalternos estão apenas em estado de defesa, sob alerta (pode-se demonstrar esta verdade com a história da Revolução Francesa, pelo menos até 1830)”. E por isso mesmo, considera Gramsci que “todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deve ser de valor inestimável para o historiador integral” (GRAMSCI, 2002b, p. 135). “Historiador integral” remete à ideia de que o historiador evite tanto a história fetichista quanto a história complementar.

O problema da unidade dos grupos subalternos, do Estado e da necessidade histórica (quando as lutas dos grupos subalternos expressam ou impulsionam novas necessidades históricas) é um problema historiográfico e, mais ainda, político atual. Se o problema político da construção e formação de um sujeito histórico coletivo que protagonize a superação do capitalismo histórico na direção de uma sociedade mais igualitária e sustentável é de difícil resolução e, provavelmente, ainda não conta com as condições necessárias e suficientes para seu encaminhamento, se é que um dia contará, no campo historiográfico, há muito que ser feito. É novamente hora, só que agora não mais apenas dos historiadores sociais, mas de todos nós, como já queria Hobsbawm em 1971, alertando contra os perigos das especializações excessivas, de caminharmos em direção à história das sociedades (HOBSBAWM, 1998).

Bibliografia citada

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 Resumo: Gramsci para historiadores

O ensaio apresenta as reflexões de Antonio Gramsci como um trabalho teórico que, mesmo lidando com a política, trata fundamentalmente com a história e com a prática dos historiadores. Para o pensador e revolucionário italiano, a filosofia da práxis era o historicismo absoluto ou realista. Os conceitos gramscianos, ou cânones metodológicos e de interpretação histórica e política, como ele os considerava, são elaborados a partir de análises de situações e épocas históricas determinadas, notadamente a Itália do século XIX, em particular, e a Europa moderna, de um modo mais amplo. São, nesse sentido, conceitos históricos desenvolvidos para e a partir de uma prática historiográfica. Para afirmar esse ponto, Gramsci se engaja contra dois adversários: o mecanicismo determinista predominante na tradição marxista da Internacional Comunista, exemplificado pelo livro A teoria do materialismo histórico. Manual de sociologia marxista, de Nikolai Buhkarin, e o idealismo filosófico e historiográfico, singularizado em diversos escritos de Benedetto Croce.

Palavras-chave: Antonio Gramsci, filosofia da práxis, historiografia.

Abstract: Gramsci for Historians

The essay presents the reflections of Antonio Gramsci as a theoretical development that, though dealing with Politics, is fundamentally oriented towards History and the historiographical practice. For Gramsci, the philosophy of praxis was the absolute or realistic historicism. The gramscian concepts, or canons of historical and political methodology and interpretation, as he put it, are elaborated from the analysis of historical determined situations and epochs, namely 19th Century Italy, in particular, and Modern Europe, in general. Therefore, they are historical concepts developed for and from a historiographical practice. To assert this point, Gramsci argues against the mechanicism and determinism of the Communist International, exemplified in the The Theory of Historical Materialism. Manual of Marxist Sociology, from Nikolai Bukharin, and the idealism of the philosophical and historiographical writings of Benedetto Croce.

Keywords: Antonio Gramsci, Philosophy of Praxis, Historiography.

 



[1] Publicado em História da Historiografia, Ouro Preto, n. 10, dezembro de 2012, p. 211-218.

[2] Empregarei, sempre que a distinção me parecer suficientemente clara, o termo História, com maiúscula, para designar a História como disciplina do conhecimento e o termo história, com minúscula, para designar o processo histórico vivenciado e protagonizado pela Humanidade. Entretanto, nem sempre a distinção é simples. O termo filosofia da história, como optei por utilizar, poderia dizer, e, em alguns casos, diz respeito a uma filosofia da História como campo disciplinar. Inversamente, o mesmo ocorre com a expressão teoria da História.

[3] Os autores estão se referindo, genericamente, à geração de historiadores, principalmente franceses, que sucedeu Fernand Braudel a partir da segunda metade da década de 1970.

[4] A expressão foi cunhada no século XIX e designava a necessidade de unificação política da Itália no século XIX com base em identidades culturais e históricas. Posteriormente, passou a designar o conjunto de acontecimentos que redundaram na formação do Estado nacional italiano.

[5] Ernest Bernheim (1860-1942), historiador alemão. Escreveu, em 1889, o Manual do método histórico, que, a partir de 1903, passou a se intitular Manual do método histórico e da filosofia da história. O manual foi publicado em italiano em 1907.

[6] O Ensaio de popular é o livro de Bukharin, A teoria do materialismo histórico. Manual popular de sociologia marxista, de 1921. De acordo com nota ao texto de Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, provavelmente, citava a edição francesa, La théorie du matérialisme historique. Manuel populaire de sociologie marxiste, de 1927 (GRAMSCI, 1999, p. 460-1, Notas ao texto).

[7] A influência desse texto sobre a micro-história italiana não escapou à análise de Henrique Espada Lima, em A micro-história italiana (2006).

[8] História ético-política, como expressão do papel do arbítrio no devir humano em um quadro de evolução cultural e teórica, e não como mero acaso e arbitrariedade, foi a expressão utilizada por Croce para se contrapor, por um lado, ao determinismo mecanicista que ele identificava com o marxismo e, por outro, às visões que não conferiam à história qualquer inteligibilidade racional, como em Nietzsche. Ver a esse respeito ROBERTS (1995).

[9] A relação entre a concepção braudeliana dos diferentes tempos históricos e a concepção gramsciana de momentos da relação de forças é explorada por Esteve Morera (MORERA, 1990, p. 74-132).

[10] Todas as passagens que Portantiero cita são do Caderno 13 sobre Maquiavel (GRAMSCI, 2002b).

[11] Sobre a importância do quadro geral na consciência e na elaboração da prática e do conhecimento históricos, ver Rüsen (2011).

FILOSOFIA DA PRÁXIS

Por Nicola Badaloni

O conceito de “práxis”, como agir individual e social, está no centro de toda a filosofia inaugurada por Karl Marx e pelo seu modo de abordar os problemas da produção e da ciência. Nos chamados Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, que Gramsci não teve a possibilidade de conhecer, Marx escrevia: “Assim como a sociedade produz o homem enquanto homem, ela é produzida por ele”. Essa idéia de que a “produção” ou “práxis humana” engloba não apenas o trabalho, mas também todas as atividades que se objetivam em relações sociais, instituições, carecimentos, ciência, arte, etc., atravessa todo o pensamento de Marx e constitui o seu princípio fundamental.

Antonio Labriola desenvolveu este aspecto, afirmando — num de seus ensaios sobre A concepção materialista da história — que o materialismo histórico “parte da práxis, ou seja, do desenvolvimento da operosidade; e, como é teoria do homem que trabalha, considera a própria ciência como um trabalho”. Para Labriola, “todo ato de pensamento é um esforço, ou seja, um novo trabalho”, ao passo que “o trabalho realizado, ou seja, o pensamento produzido, facilita os novos esforços voltados para a produção de um novo pensamento”.

Esta premissa serve para demonstrar que o termo “filosofia da práxis”, do qual fala Gramsci, não é um expediente lingüístico, mas uma concepção que ele assimila como unidade entre teoria e prática. Discutindo sobre a undécima tese de Marx, que propõe mudar o mundo e não mais interpretá-lo, Gramsci escreve nos Cadernos que essa tese “não pode ser interpretada como um gesto de repúdio a qualquer espécie de filosofia”, mas como “enérgica afirmação de uma unidade entre teoria e prática. […] Deduz-se daí, também, que o caráter da filosofia da práxis é sobretudo o de ser uma concepção de massa”. E, em outro local, repete: “Para a filosofia da práxis, o ser não pode ser separado do pensamento, o homem da natureza, a atividade da matéria, o sujeito do objeto; se essa separação for feita, cai-se numa das muitas formas de religião ou na abstração sem sentido”.

A unidade de teoria e de prática serve a Gramsci para delinear uma série de conceitos científicos capazes de interpretar o mundo que lhe era contemporâneo (hegemonia, bloco histórico, novo senso comum, conformismo de massa em sua ligação com novas formas de liberdade individuais e coletivas, revolução passiva, etc.).

Aqui, numa formulação geral, iremos nos limitar às seguintes considerações sobre a filosofia da práxis:

1) Nem a filosofia da práxis nem nenhuma ciência a ela ligada nos permitem fazer previsões que tenham caráter determinista. Há um único modo possível de prever: aquele que vê a previsão como um ato prático que implica a formação e a organização de uma vontade coletiva. Desta tese, Gramsci deduz sua crítica a Croce, na medida em que a religião crociana da liberdade não contribui para a criação de resultados previsíveis, já que evita formular um projeto de transformação e uma vontade política correspondente a tal projeto. Essa mesma teoria da “previsão” põe em crise as concepções deterministas típicas do cientificismo da Segunda Internacional, que são também fonte de passividade.

2) A vontade de que fala Gramsci (e, portanto, a práxis) não é algo em estado puro, mas contém os elementos materiais que o próprio homem objetivou. Isso significa, em primeiro lugar, que a filosofia da práxis é, para Gramsci, a consciência plena das contradições da sociedade que lhe era contemporânea, de modo que — como ele diz nos Cadernos — “o próprio filósofo, entendido individualmente ou como todo um grupo social, não só compreende as contradições, mas põe a si mesmo como elemento da contradição, eleva este elemento a princípio de conhecimento e, portanto, de ação”.

Ciências do homem (distintas entre si) e também ciências da natureza, para além da sua independência recíproca, encontram um momento de unidade, ao se tornarem política. Gramsci sintetiza isso nos seguintes termos: “A filosofia da práxis é o ´historicismo absoluto`, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história”. Para entender esta última afirmação, o leitor deverá recordar a tese acima mencionada sobre a verdade como correspondência a uma realidade objetivada pelo próprio homem.

3) Gramsci define “o homem como uma série de relações ativas (um processo)”, de modo que ele “não entra em relação com a natureza simplesmente pelo fato de ser ele mesmo natureza, mas ativamente, por meio do trabalho e da técnica”. Em outras palavras, todo indivíduo “não só é a síntese das relações existentes, mas também da história dessas relações, ou seja, é o resumo de todo o passado”. Como é possível mudar o mundo se o indivíduo depende de tal modo do seu passado? A resposta de Gramsci é que “o indivíduo pode se associar com todos os que querem a mesma mudança; e, se essa mudança for racional, o indivíduo […] pode obter uma mudança bem mais radical do que aquela que, à primeira vista, pode parecer possível”.

Concluindo, a filosofia da práxis é, para Gramsci, construção de vontades coletivas correspondentes às necessidades que emergem das forças produtivas objetivadas ou em processo de objetivação, bem como da contradição entre estas forças e o grau de cultura e de civilização expresso pelas relações sociais. Está implícita nela, que aparece como uma concepção filosófica, uma série de ciências da natureza e do homem. Tomadas isoladamente, tais ciências podem ser consideradas como independentes; consideradas como expressão da possível contradição entre atividades criativas e relações comunicativas de tipo social, passam a fazer parte da filosofia da práxis e, desse modo, podem influir sobre a política, isto é, sobre aquelas mudanças que nos fazem entrever um novo modo de viver e níveis superiores de civilização.

 Fonte: Gramsci e o Brasil

GRAMSCI E A “SUBIDA AO SÓTÃO” DA FILOSOFIA DA PRÁXIS

Por Marco Mondaini 

Os estudiosos e integrantes da “Escola dos Annales” – o movimento marcadamente francês, nascido em 1929, que revolucionou a historiografia tradicional e construiu a “História Nova” – costumam observar uma significativa transformação ocorrida em seu seio durante os anos 60 e 70. O interesse intelectual dos seguidores de Marc Bloch, Lucien Febvre (primeira geração) e Fernand Braudel (segunda geração) transferiu-se das análises socioeconômicas para aquelas político-ideológicas. Os historiadores da sua terceira geração abandonaram o “porão” da história econômica e subiram até o “sótão” da história cultural [1].

No presente excurso, pretendemos mostrar que, no âmbito específico da teoria marxista, esta passagem do “porão” ao “sótão”, de uma preocupação quase exclusiva com o nível material da realidade para uma ênfase ponderada no aspecto espiritual da vida, deu-se aproximadamente quatro décadas antes com as reflexões originais de Antonio Gramsci.

Com o autor dos Cadernos do cárcere, o marxismo inicia um processo de superação do determinismo econômico que o caracterizou não apenas durante o período de predomínio do absolutismo teórico-político marxista-leninista, mas também em meio ao reinado da Segunda Internacional; tal superação, para nós, corresponde a uma possibilidade legítima de apropriação do legado intelectual de Karl Marx.

Em outras palavras, pelas mãos de Gramsci é recuperado um outro Marx (e não sem tensões como, por exemplo, na permanência do uso das altamente questionáveis dicotomias de “infra-estrutura/superestrutura” e “classe em si/classe para si”), que não é aquele claramente influenciado pelo evolucionismo cientificista do século XIX; é trazido de novo à vida o Marx que viu e defendeu a razão da liberdade perante a força da necessidade, o Marx que edificou uma teoria da sociedade humana baseado em três pilares fundamentais, a saber, as noções de totalidadecontradição e historicidade[2].

Entretanto, Gramsci não apenas recuperou o “Marx da liberdade da ação política e cultural”, diferentemente daqueles que preferiram mergulhar na herança do “Marx da necessidade da determinação econômica”, como, além disso, superou dialeticamente o autor de O capital, ampliando, na formulação de conceitos novos, o entendimento das três noções que embasam a dialética materialista e direcionando-as no sentido de uma “história ético-política” [3].

E neste ponto preciso, Gramsci parece não ter se apercebido por completo da verdade contida na crítica contundente ao pensamento marxista feita pelo filósofo italiano, fundador da historiografia presentista, Benedetto Croce: o marxismo, sem dúvida alguma, nunca tinha se constituído numa “história ético-política”. Somente com o próprio Gramsci, sob forte e decisiva influência de Croce, o marxismo incorporou este tipo de história e deixou de ser apenas um sinônimo de economicismo vulgar. É esclarecedora, dentro desse contexto, o comentário de Gramsci sobre o debate travado entre Croce e Lunatcharski, por ocasião de um congresso internacional de filosofia em Oxford, sobre a existência ou não de uma doutrina estética do materialismo histórico:

Pode-se, por certo, demonstrar que muitos dos chamados teóricos do materialismo histórico caíram numa posição filosófica semelhante a do teologismo medieval, e fizeram da “estrutura econômica” uma espécie de “deus desconhecido”; mas, que significado teria isto? Seria como se quiséssemos julgar a religião do papa e dos jesuítas falando das superstições dos camponeses de Bergamo [4].

A partir desse contexto, realizamos, aqui, uma tripla aposta. Em primeiro lugar, com as reflexões implementadas por Gramsci, as noções de totalidade(a idéia de que a realidade histórica só pode ser captada levando-se em consideração todos os seus aspectos e que se volta contra a apologia do fragmentário feita pelos teóricos da pós-modernidade, a qual já se encontra no cerne dos argumentos de Max Weber), de contradição (a concepção de que o movimento na história é fruto dos conflitos existentes entre os homens e que se choca com o funcionalismo harmônico erigido por Émile Durkheim e todas as formas posteriores de conservadorismo organicista) e dehistoricidade (a proposição de que as sociedades e suas transformações só podem ser compreendidas através da percepção da sua localização histórica, o que bate de frente com todas as formas de dogmatismo bolchevista, seja a stalinista ou a trotskista), as três juntas, ganharam um aprofundamento teórico sem precedentes no interior das várias tradições marxistas, dos inúmeros marxismos antes desenhados. Em segundo lugar, mesmo advogando a proposição de que, “para ser um bom marxista hoje, é preciso ir além das fronteiras do próprio marxismo”, a partir dos frutos deixados pela obra gramsciana é possível encontrar respostas atuais aos grandes impasses vividos pela humanidade sob as estruturas de dominação do sistema capitalista contemporâneo. Em terceiro lugar, em relação às críticas arrasadoras à suposta ignorância pelo marxismo das questões culturais, das duas uma: ou são de má-fé ou desconhecem por completo (o que é muito pouco provável) a “história ético-política”, a “subida ao sótão” da filosofia da práxis de Antonio Gramsci.

Buscaremos, aqui, indicar a forma como se deu esta passagem no pensamento gramsciano através de três instantes. Num primeiro, enfocaremos as preocupações contidas nos escritos da sua fase pré-carcerária – as crônicas teatrais e os artigos sobre os conselhos de fábrica e a questão meridional. Num segundo, nos deteremos naquilo que foi dito de informalmente na correspondência do cárcere – e que é revelado pela cabeça não do intelectual rigoroso, mas do homem de carne e osso que é obrigado a conviver com os terríveis sofrimentos da prisão -, na tentativa de rastrear a influência dessa experiência trágica no processo de construção do seu edifício teórico. Num terceiro, investigaremos o conceito-chave forjado no período carcerário – “hegemonia” [5].

II

As crônicas teatrais escritas pelo jovem Gramsci – entre 1916 e 1920 – noAvanti! , órgão central do Partido Socialista Italiano (PSI), revelam a dupla influência sofrida nos seus anos de formação intelectual. Por um lado, a orientação anticapitalista recebida através do irmão mais velho Gennaro. Por outro lado, a presença idealista resultante da entrada em contato com o neo-hegelianismo de Benedetto Croce e Giovanni Gentile.

Assim, convivem lado a lado, de forma pacífica, críticas severas à dissolução artística resultante da capitalização e da mercantilização do teatro e à sua transformação de experiência estética em fato de ordem comercial, por um lado, e a idéia de obra de arte como diversidade, distinção, individuação, não submetida a nenhuma espécie de lógica extrínseca, por outro lado. Então, a percepção do valor social do teatro (sua função de satisfazer a necessidade de ocupação cerebral, de exercitar a ação estética do espírito, após uma jornada de trabalho febril e pesada, após a atividade econômica e um mero exercício de forças musculares) se completava com a visualização do ator como um indivíduo no qual a fantasia criadora predomina absolutamente sobre a lógica, pois ele deve dar prosseguimento ao trabalho fantástico do autor [6].

Uma síntese dessa convivência entre socialismo e idealismo no Gramsci da casa dos vinte anos pode ser indicada exemplarmente no seu comentário sobre a encenação de Anfissa, de Andrieiev:

Confessamos, porém, que o público burguês do teatro não era dos mais adequados a seguir e sentir a obra de arte. A inteira verdade desta obra, infelizmente, devia lhe provocar a impressão de um murro no estômago.

Desejamos para este drama, portanto, um público melhor, mais tosco, mais imediatamente sincero, mais próximo de gozar e sofrer a impetuosa angústia da tragédia. Desejamos para ele um público de proletários [7].

No mesmo período em que escreveu sobre questões estéticas no Avanti! , Gramsci também atuou politicamente, lutando pelo movimento conselhista que sacudiu o Norte industrial italiano, principalmente a cidade de Turim, em 1919 e 1920. Então, junto a Angelo Tasca, Palmiro Togliatti e Umberto Terracini, Gramsci organiza o jornal L’Ordine Nuovo, objetivando fazer a revolução italiana a partir dos conselhos de fábrica.

Enquanto Gramsci e os seus companheiros de L’Ordine Nuovo lutavam por um tipo de comunismo de conselhos, por uma revolução baseada no lema “Todo poder do Estado aos conselhos de fábrica”, Amadeo Bordiga defende, no periódico Soviet, a impossibilidade de fazer uma revolução sem a direção rígida do partido de classe e define como ilusória a existência de conselhos e sindicatos sem a direção consciente de uma organização propriamente política centralizadora das suas lutas.

Todavia, a nosso ver, o posicionamento gramsciano neste momento se encontra atravessado por uma ambigüidade, que expressa tanto a forte influência exercida pelo pensamento de Lenin e pela vitoriosa Revolução Russa, como uma percepção espontaneísta, bastante próxima do luxemburguismo, fundamentada na observação da importância da experiência do movimento independente dos trabalhadores.

Dessa forma, por um lado, encontramos um Gramsci que se refere ao partido como consciência crítica e operante da classe trabalhadora, força dirigente do movimento operário, órgão de educação comunista, chama da fé, depositário da doutrina, poder supremo que harmoniza e conduz à meta as forças organizadas e disciplinadas da classe operária e camponesa, instituição que tem a tarefa de transformar definitivamente os trabalhadores do campo e da cidade em classe dominante, a parte mais consciente e responsável da classe operária [8].

Por outro lado, percebemos um outro Gramsci, que critica a idéia do partido e do sindicato como representantes do verdadeiro processo da revolução, já que este teria lugar no interior da fábrica, na produção, com a formação dos conselhos – por isso mesmo, partido e sindicato não deveriam nunca tutelar os conselhos de fábrica. Ao contrário do caráter não-revolucionário do sindicato (parte integrante do sistema capitalista que negocia a força de trabalho da classe operária, organizando-a como um conjunto de assalariados), o conselho de fábrica se distinguiria por ser o órgão revolucionário da classe operária, o modelo do Estado proletário, o germe da sociedade comunista, pois tratava os trabalhadores enquanto um agrupamento de produtores [9].

No decorrer da primeira metade dos anos vinte, todavia, as ambigüidades do pensamento ainda não maduro de Gramsci vão sendo suprimidas e, em seu lugar, aparecem já as preocupações e as primeiras elaborações teóricas que o acompanharão no período carcerário, as quais constituirão sua contribuição original ao desenvolvimento do materialismo histórico.

No ano de 1924, três anos após a fundação do Partido Comunista Italiano (PCI), Gramsci fareja a necessidade da formulação de uma estratégia revolucionária diferente daquela levada a cabo pelos bolcheviques russos, que fosse mais adequada à realidade histórica em que ele vivia. Neste período, os conceitos de “Ocidente/Oriente” e “guerra de movimento/guerra de posição” surgem de forma germinal quando Gramsci fala, em fevereiro, que:

A determinação (revolucionária) que, na Rússia, era direta e punha as massas nas ruas para o assalto revolucionário complica-se na Europa Central e Ocidental, por causa de todas essas superestruturas políticas, criadas pelo maior desenvolvimento do capitalismo; isso torna mais lenta e mais prudente a ação das massas e, por conseguinte, exige do partido revolucionário toda uma estratégia e uma tática bem mais complexa e de longo alcance do que aquelas que foram necessárias aos bolcheviques no período entre março e dezembro de 1917 [10].

E volta a dizer, em setembro, após o assassinato do deputado socialista Giacomo Mateotti pelos fascistas, que a hora não era de tentativas insurrecionais, mas sim de organização política:

A situação é “democrática” porque as grandes massas trabalhadoras estão desorganizadas, dispersas, pulverizadas no povo indiferenciado. Por isso, qualquer que possa ser o desenvolvimento imediato da crise, podemos prever somente uma melhoria na posição política da classe operária, não uma luta vitoriosa pelo poder. A tarefa essencial do nosso partido consiste na conquista da maioria da classe trabalhadora; a fase que atravessamos não é a luta direta pelo poder, mas uma fase preparatória, de transição à luta pelo poder; em suma, uma fase de agitação, de propaganda, de organização [11].

Mas é em setembro/outubro de 1926, no artigo inacabado “Alguns temas da questão meridional” (não concluído devido a sua prisão no mês de novembro), que se constata uma verdadeira inflexão no desenvolvimento teórico de Gramsci. Neste que é o texto mais rico, mais completo, do líder comunista italiano, antes do seu encarceramento pela ditadura fascista, as categorias de “hegemonia”, “classe dirigente”, “consenso”, “bloco histórico”, “intelectual orgânico e intelectual tradicional” aparecem sob a forma de sugestão.

Ao procurar dar uma resposta única a três questões aparentemente distintas (a meridional, a nacional e a social), Gramsci atentou para a centralidade da função exercida pelos intelectuais na sociedade, como enfermeiros que fazem o ponto de sutura entre estrutura socioeconômica e superestrutura político-ideológica, ou como operários que soldam as fissuras de um bloco histórico. A fim de destruir o bloco histórico que se encontrava no poder naquele momento na Itália, baseado na aliança entre industriais do Norte e latifundiários do Sul (e o nosso autor sabia muito bem que o atraso do Sul era funcional em relação ao desenvolvimento capitalista do Norte), impunha-se como condição sine qua non a formação de uma camada de intelectuais como elementos organizativos vinculados intimamente à classe operária; tal camada seria responsável pela formação de um bloco histórico alternativo, fundamentado na união entre operários setentrionais e camponeses meridionais, acabando assim com a influência conservadora do clero – daqueles intelectuais típicos das sociedades tradicionais e não das sociedades industriais – sobre a massa camponesa [12].

III

[…] dizem que o mar é sempre imóvel além dos trinta metros de profundidade; pois bem, eu afundei pelo menos vinte metros, isto é, estou imerso naquela camada que apenas se move quando se desencadeiam tempestades de uma certa importância, muito acima do normal. Mas sinto afundar sempre mais, e lucidamente vejo o momento em que alcançarei, por linhas imperceptíveis, o nível da imobilidade absoluta, onde não se farão sentir nem mesmo as borrascas mais formidáveis, de onde não será mais possível nem mesmo ver os movimentos das camadas superiores sequer como uma simples marejada de bordados de espuma.

Este trecho da carta escrita por Gramsci a sua cunhada, às vésperas de completar dois anos de encarceramento, onde realiza uma comparação entre seu estado de espírito e o mar, assinala a passagem trágica ocorrida na vida de um homem que, nos primeiros tempos de prisão, ainda raciocinava de acordo com a máxima “pessimismo da inteligência/otimismo da vontade” [14]; mas, com os terríveis sofrimentos físicos e psíquicos impostos pelo isolamento forçado (e, principalmente, após a primeira grave crise de agosto de 1931 e a segunda de março de 1933), Gramsci acaba perdendo todas as esperanças e passa a assumir o duplo pessimismo da razão e do desejo [15].

No entanto, apesar de todos os males sofridos (ou, talvez, por causa destes mesmos males), Gramsci consegue transformar o marxismo, que deixa de ser uma teoria unicamente voltada para a “reforma econômica” para se orientar também para a “reforma intelectual e moral” das sociedades modernas – criando, assim, uma nova forma antideterminista do marxismo.

A nosso ver, a experiência do cárcere, o aprendizado existencial na prisão como que se incorporaram no aparelho conceitual legado por Gramsci – sua lição de vida parece ter se infiltrado por entre os poros das formulações teóricas mais sofisticadas. Nesse sentido, a fim de germinar, as categorias entrevistas por Gramsci até 1926 necessitariam do adubo contraditoriamente destruidor representado pelos mais de dez anos de prisão. Assim, a “subida ao sótão” realizada por Gramsci teve uma gênese metapolítica [17].

As confissões de que o presente e o futuro haviam perdido completamente a importância e teriam se tornado coisas incertas, não mais pertencentes a ele e à sua vontade, e que, nesse tipo de situação, só se conseguiria ter perspectivas ante o passado, tornado o único fato certo da vida (por isso mesmo, passa-se a revolvê-lo continuamente, analisando-o e terminando por vê-lo em todas as suas relações) – estas confissões parecem nos dar algumas pistas para o esclarecimento da gênese metapolítica do pensamento maduro de Gramsci [18]. Restava a ele somente a idéia de fazer algo que o deixasse eternizado:

A minha vida transcorre sempre igualmente monótona. Mesmo estudar é muito mais difícil do que pareceria. Recebi alguns livros e em verdade leio muito (mais de um volume por dia além dos jornais), mas não é a isto que me refiro; falo de outras coisa. Estou dominado (e este será um fenômeno comum aos encarcerados, segundo penso) por esta idéia: que precisaria fazer alguma coisa für ewig, segundo uma complexa concepção de Goethe que recordo ter atormentado muito o nosso Pascoli. Em resumo, pretenderia, segundo um plano preestabelecido, ocupar-me intensa e sistematicamente de algum tema que me absorvesse e centralizasse a minha vida interior. Pensei em quatro temas até agora, e este já é um indício de que não consigo me recolher [19].

Encabeçando a lista, estaria a grande preocupação teórica de Gramsci, a saber, a realização de um estudo sobre os intelectuais italianos – interesse nascido como que colado ao desejo de aprofundar o conceito de Estado. E, neste ponto, dois trechos das Cartas do Cárcere parecem justificar amplamente aquilo que sustentamos no presente item. No primeiro, Gramsci indica como pretende recuperar (ampliando) o seu último escrito do período pré-carcerário:

Lembra o meu rápido e superficialíssimo escrito sobre a Itália meridional e a importância de B. Croce? Pois bem, gostaria de desenvolver amplamente a tese que então esboçara, de um ponto de vista desinteressado, für ewig [20].

No segundo, relaciona seu estudo sobre os intelectuais italianos ao conceito de Estado:

Este estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que comumente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para amoldar a massa popular ao tipo de produção e à economia de dado momento) e não como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia através das chamadas organizações privadas, como a Igreja, os sindicatos, as escolas, etc.), e justamente na sociedade civil operam os intelectuais (Benedetto Croce, por exemplo, é uma espécie de papa leigo e instrumento eficacíssimo de hegemonia, ainda quando, vez por outra, esteja em desacordo com este ou aquele governo, etc.) [21].

IV

O conceito de hegemonia em Gramsci nasce como corolário da nova significação por ele dada à realidade estatal. Ao definir o Estado como uma instituição formada por dois “grandes planos superestruturais” (a “sociedade civil”, onde se constrói o “consenso”, e a “sociedade política”, onde se exerce a “coerção”), ele constatou que o poder estatal não mais se legitimava puramente através da “dominação”, mas também por meio da “hegemonia” – o Estado transformara-se em “hegemonia revestida de coerção” [22].

O marxismo, para Gramsci, reivindica a história ético-política, o momento da hegemonia, como algo essencial, que constitui condição sine qua non da sua concepção de Estado. Este fato está fecundamente enraizado, por sua vez, na percepção historicamente localizada de que as chamadas superestruturas, as ideologias “são uma realidade objetiva e operante”, “são fatos históricos reais”, e não “pura aparência”, que se desenvolvem intimamente relacionadas, sob um nexo de reciprocidade vital, com as ditas estruturas, dando vida a um “bloco histórico”. A distinção entre conteúdo (forças materiais) e forma (ideologias) seria apenas de caráter didático, pois, de acordo com Marx, “os homens tomam conhecimento dos conflitos de estrutura no terreno das ideologias”.

Assim, é realçada a importância do momento ideológico, do clima cultural, na atividade prática coletiva. E é por isso mesmo que Gramsci não tem o menor pudor em afirmar que a ciência e o próprio marxismo são ideologias e que a filosofia é uma concepção de mundo, uma luta cultural para transformar a mentalidade popular. Para ele, valorização da cultura, crítica ao cientificismo e afirmação dos valores democráticos no processo educacional (entendido num sentido amplo, para além dos muros escolares) fazem parte de um corpo único, o que é facilmente constatado na sua idéia de que “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica de vinculações recíprocas” [23]. Isto fica ainda mais evidente quando comenta o papel desempenhado pelos intelectuais como “funcionários das superestruturas”. Seus serviços seriam “elemento de hegemonia”, “de democracia no sentido moderno”, pois realizariam “nexos nacionais entre governantes e governados” [24].

Entretanto, a idéia gramsciana de hegemonia não se limita – como, por exemplo, no pensamento de Lenin – ao campo restrito da política. Diferentemente, ela invade profundamente o espaço da cultura, até então bastante ignorada pelos marxistas, que é definida como:

[…] uma coerente, unitária e nacionalmente difundida “concepção da vida e do homem”, uma “religião laica”, uma filosofia que tenha se transformado precisamente em “cultura”, isto é, que tenha gerado uma ética, um modo de viver, uma conduta civil e individual [25].

Uma definição quase idêntica àquela dada à ideologia:

[…] uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas [26].

E à hegemonia:

[…] uma unidade intelectual e uma ética adequadas a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos [27].

Por isso, a necessidade de a “filosofia da práxis” lutar não apenas no nível especificamente político, mas também por uma nova cultura, por um novo humanismo, com base na crítica dos costumes, dos sentimentos, das concepções do mundo, da estética e da arte [28].

Para Gramsci, esta nova cultura deve expressar todo um processo de renovação intelectual e moral, um processo difusor de uma contra-hegemonia, enraizado no húmus da experiência nacional-popular. E, a fim de se tornar nacional-popular, um movimento intelectual deve trazer em si um viés “Renascimento” (alta cultura) e outro “Reforma” (cultura popular).

E foi, justamente, a ausência da “ida ao povo-nação” por parte da classe culta italiana – a falta de uma íntima solidariedade democrática entre intelectuais dirigentes e massas populares, entre elite de escritores e público comum – que levou Gramsci a caracterizar a literatura feita no seu país como cosmopolita. Ela nunca adquiriu historicidade de massa e nunca se tornou uma fato nacional [29]. Assim, devido à inexistência de identidade de concepção de mundo entre letrados e povo italiano (a presença de um “Renascimento elitista”, sem a concomitância de uma “Reforma popular”), este último encontrar-se-ia subordinado à hegemonia intelectual e moral de outros povos:

Na Itália, o termo “nacional” tem um significado muito restrito ideologicamente e, de qualquer modo, não coincide com “popular”, já que os intelectuais estão afastados do povo, isto é, da “nação”, estando ligados, ao contrário, a uma tradição de casta, que jamais foi quebrada por um forte movimento político popular ou nacional vindo de baixo […] o termo “nacional” de uso corrente está ligado na Itália à tradição intelectual e livresca [30].

Contra os dois extremos compreendidos pelo “elemento popular”, que sente “mas nem sempre compreende ou sabe”, e pelo “elemento intelectual”, que sabe “mas nem sempre compreende e muito menos sente”, Gramsci propõe, então, uma nova relação entre intelectuais e povo-nação, dirigentes e dirigidos, governantes e governados: “uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, desta forma, saber (não de uma maneira mecânica, mas vivencialmente)” [31].

Caberia ao “moderno Príncipe” – “aquele determinado partido que pretende (e está racional e historicamente destinado a este fim) fundar um novo tipo de Estado” [32] – a realização dessa tarefa, o dever de ser o responsável pela propaganda e organização de uma “reforma intelectual e moral” orientada no sentido da formação de uma “vontade coletiva nacional-popular”. Uma “reforma intelectual e moral” que não pode estar desvinculada dos ideais de “reforma econômica”, pois a hegemonia é ético-política mas também econômica. Só assim será edificado um bloco histórico alternativo, isto é, uma outra “unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura)” [33].

Por exercer uma função essencialmente hegemônica, o “moderno Príncipe” é percebido como tendo a tarefa de defender o desaparecimento do Estado, ou seja, “a reabsorção da sociedade política pela sociedade civil” [34].

O “moderno Príncipe”, de acordo com esse raciocínio, seria uma organização política típica dos países do “Ocidente” (onde há “entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação”) e não do “Oriente” (onde “o Estado era tudo e a sociedade civil era primordial e gelatinosa”), apropriada aos países nos quais é travada uma “guerra de posição” (estabelecida nas trincheiras da sociedade civil) e não uma “guerra de movimento” (efetivada diretamente contra a sociedade política) [35].

Exclusivamente nestas nações “ocidentais”, o “moderno Príncipe” conseguiria desenvolver uma luta pela “passagem do momento econômico ao momento ético-político”, “a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens”, a migração do “objetivo ao subjetivo”, da “necessidade à liberdade”: o “processo de catarse”. Um movimento definido por Gramsci como “o ponto de partida da filosofia da práxis”, que parece sintetizar tanto a “radicalidade democrática” como a “subida ao sótão” contidas na sua filosofia:

[…] A estrutura da força exterior que subjuga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em fontes de iniciativa [36].

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Marco Mondaini é professor de História da UFF.

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Notas

[1] Ver, por exemplo: BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989) . São Paulo, Unesp, 1991, p. 81. Em nota, o historiador britânico diz que, segundo Michel Vovelle, a frase “do porão ao sótão” foi criada por Emmanuel Le Roy Ladurie.

[2] LOWY, Michael. Ideologias e ciência social. São Paulo, Cortez, 1992, p. 14-7.

[3] Com isso, obviamente, não estamos defendendo a idéia de que “liberdade” e “necessidade” estejam isoladas entre si na realidade concreta, muito menos que Marx pensasse nesses termos. Ao contrário, concordamos com a visão de Giambattista Vico (lido por Marx com atenção) da história como uma espiral, síntese constante do encontro entre liberdade e necessidade. O que queremos dizer é que o privilegiamento inicial de uma das duas traz em si explícitos resultados teórico-políticos. A expressão “ampliando” foi empregada, ainda neste parágrafo, como sinônimo de “concretizando”, isto é, “tornando mais complexo, mais saturado de determinações”.

[4] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Tatiana Schucht” de 1/12/1930. In:Cartas do Cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, p. 178.

[5] Torna-se necessário sublinhar que, ao realçarmos a importância de Gramsci no processo de renovação do pensamento marxista, não desconhecemos o caráter significativo de reflexões não menos renovadoras, como as desenvolvidas por outros membros do chamado “marxismo ocidental” – principalmente aquelas implementadas pelos filósofos da “Escola de Frankfurt” e pelo existencialista francês Jean-Paul Sartre – e pelo genial agrupamento de historiadores marxistas que romperam com o Partido Comunista Britânico, em 1956, por discordarem das suas posições políticas e ideológicas, e que acabaram dando origem à tradição do “marxismo inglês”: Christopher Hill, Eric Hobsbawm e Edward Thompson.

[6] GRAMSCI, Antonio. “Crônicas teatrais”. In: Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 191-265

[7] Ib., p. 265.

[8] Ver os artigos de Gramsci: “Democracia operária”; “Os sindicatos e a ditadura”; “Sindicatos e conselhos”. In: GRAMSCI, Antonio e BORDIGA, Amadeo. Conselhos de fábrica. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 33-7; 49-56; 100-6.

[9] Ver os artigos de Gramsci: “Sindicatos e conselhos”; “Sindicalismo e conselhos”; “O conselho de fábrica”. In: Ib., p. 39-45; 61-6; 91-7.

[10] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Togliatti, Terracini e C.”. Citada em: DE FELICE, Franco e PARLATO, Valentino. “Introdução”. In: GRAMSCI, Antonio. A questão meridional. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 40, n. 53.

[11] GRAMSCI, Antonio. “A crise italiana”. In: Ib., p. 105.

[12] GRAMSCI, Antonio. “Alguns temas da questão meridional”. In: Ib., p. 135-65. Torna-se necessário esclarecer que, neste texto, Gramsci ainda não usa os termos “intelectual orgânico” e “intelectual tradicional”, e escreve apenas “bloco” e não “bloco histórico”.

[13] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Tatiana Schucht” de 20/10/1928. In:Novas cartas de Gramsci. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 49-50.

[14] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Carlo Gramsci” de 19/12/1929. In:Cartas do cárcere, p. 142. A expressão utilizada por Gramsci é de autoria do escritor francês Romain Rolland.

[15] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Tatiana Schucht” de 29/5/1933. In: Ib., p. 348. Será justamente nesse período – segundo o próprio Gramsci, a “fase catastrófica da sua vida”, na qual a única coisa que restava era resistir – que ele afirmará ter sido condenado por todos, não apenas pelo Tribunal Especial responsável pelo ato legal da condenação (“Carta a Tatiana Schucht” de 27/2/1933, p. 335). E, também, uma das declarações mais deprimentes sobre sua existência na prisão: “[…] minha vida […] é vazia, terrível e esqualidamente vazia de qualquer conteúdo interessante, de qualquer estímulo cerebral ou satisfação que torne a vida digna de ser vivida. Vivo apenas, e mal, a existência animal e vegetativa” (“Carta a Giulia Schucht” de 15/8/1932, p. 302).

[16] Lembremos rapidamente duas passagens do epistolário gramsciano demonstrativas da sua firmeza de caráter: “Creio ser simplesmente um homem médio, que tem suas convicções profundas e que não as troca por nada no mundo” (“Carta a Carlo Gramsci” de 12/9/1927, p. 81); “[…] eu não tenho vontade nenhuma de me ajoelhar diante de quem quer que seja nem de mudar minha linha de conduta” (“Carta a Carlo Gramsci” de 3/12/1928, p. 121).

[17] Sobre a relação entre a vida carcerária de Gramsci e seus conceitos inovadores, ver: BADALONI, Nicola. “Prefácio”. In: GRAMSCI, Antonio.Novas cartas do cárcere, p. 13-33.

[18] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Giulia Schuscht” de 9/2/1931; “Carta a Tatiana Schuscht” de 23/2/1931. In: Cartas do cárcere, p. 187 e 192-3. Não estaria aí, inclusive, a chave para a explicação da “simpatia” (estranha à maioria dos marxistas) de Gramsci pela psicanálise? (“Carta a Tatiana Schuscht” de 20/4/1931, p. 200).

[19] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Tatiana Schuscht” de 19/3/1927. In: Ib., p. 50. Os outros três temas são a lingüística comparada, o teatro de Pirandello e o romance de folhetim.

[20] Ib., p. 51. A expressão alemã significa “para a eternidade”.

[21] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Tatiana Schuscht” de 7/9/1931. In: Ib., p. 224.

[22] Nesse sentido, parece-nos que a tese de Norberto Bobbio (segundo a qual “a sociedade civil, em Gramsci, não pertence ao momento da estrutura, mas da superestrutura”, “a sociedade civil compreende, para Gramsci, não mais ‘todo o conjunto das relações materiais’, mas sim todo o conjunto das relações ideológico-culturais; não mais ‘todo o conjunto da vida comercial e industrial’, mas todo o conjunto da vida espiritual e intelectual”) se mantém fiel à textualidade gramsciana. Ver: O conceito de sociedade civil. Rio de Janeiro, Graal, 1994.

[23] GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989, p. 11-89 e 234-90. Neste ponto, como em muitos outros, o historicismo de Gramsci é o antípoda do estruturalismo de Louis Althusser, que pretendia expurgar da “ciência do marxismo” todo e qualquer elemento ideológico ou humanístico.

[24] GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura, p. 153.

[25] GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional, p. 4.

[26] GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história, p. 16.

[27] Ib., p. 21.

[28] GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional, p. 6.

[29] Sobre o conceito de “nacional-popular” e sua ausência na literatura italiana, ver: Ib., p. 61-138.

[30] Ib., p. 107-8. Em vários momentos dos Cadernos do cárcere, Gramsci faz uma analogia entre Reforma protestante e marxismo, por um lado, e Renascimento, liberalismo e idealismo, por outro lado. Enquanto os primeiros realizaram uma reforma intelectual e moral em escala nacional, os segundos atingiram apenas reduzidos estratos da população.

[31] GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história, p. 138-9.

[32] GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989, p. 22.

[33] Ib., p. 8-12.

[34] Ib., p. 102.

[35] Ibid., p. 75 e 92

[36] GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história, p. 53.

 Fonte: Gramsci e o Brasil

PARA VER EL SIGLO XXI CON LA LENTE DE GRAMSCI

Por Alberto Burgio

Para seguir conmemorando el septuagésimo aniversario de la muerte de Antonio Gramsci,publicamos un fragmento del volumen Por Gramsci. Crisis y potencialidad de lo moderno, que acaba de publicar en italiano el estudioso de Gramsci Alberto Burgio. El  liberalismo como respuesta restauradora ante la expansión de los derechos del trabajo. No ha sido una salida al siglo XX. Las sociedades occidentales se encuentran metidas de lleno aún en una clásica “revolución pasiva”, que sin embargo “no ha logrado una normalización del paisaje político”

Vivimos una grave crisis democrática. No se trata de una condición excepcional ni anómala. Se puede sostener, con una aparente paradoja, que el estado de crisis es la condición normal de la democracia, la cual es, tengámoslo muy en cuenta, un proceso. Lo que llamamos democracia es el proceso de conquista de la capacidad de autogobierno por parte de los cuerpos sociales. Es la dinámica expansiva de la ciudadanía que, con palabras claras y sencillas, Gramsci denomina “transformación molecular de los grupos dirigidos en grupo dirigente” A esta crucial dinámica se le suman inevitablemente contradicciones y conflictos. Es decir, crisis: provocadas por la permanente tensión entre inclusión y  exclusión (entre tendencias “expansivas” de la clase dominante y tendencias “represivas”), y destinadas a influir sobre la estructura de los sujetos (sobre los confines del demos), sobre la forma de los poderes, sobre la lógica y la finalidad de su ejercicio

Así definida, democracia es sinónimo de modernidad. La potencial coincidencia entre ciudadanía y cuerpo social (población) es en efecto, la esencia del “proyecto de la modernidad”. Esto implica que la totalidad de la historia de la modernidad se entiende a la luz de una peculiar dialéctica entre variantes y constantes: las crisis cambian a lo largo del tiempo  (son diversos los conflictos que han ido marcando el proceso,  al igual que diversos son los sujetos que en ellos se ponen a prueba) sobre el fondo de la crisis (el proceso de conquista de la autonomía por parte de los cuerpos sociales) que constituye aquí el contexto invariable.

Pero, precisamente: estas crisis son distintas la una de la otra. Su carácter –progresista o regresivo – depende de la composición de las fuerzas predominantes. La grave crisis democrática con la que hoy día nos vemos obligados a ajustar cuentas está determinada por una poderosa tendencia a la (re)apropiación privada de todo aquello que tiene valor: bienes materiales e inmateriales, recursos económicos, energéticos, y ambientales, poderes e instituciones; redes recomunicación; saberes, lenguajes y formas del imaginario. Este proceso de (re)privatización de recursos e instrumentos que en un periodo reciente del desarrollo histórico habían sido trabajosamente conquistados por lo público (por el demos)  impone a la actual crisis un carácter decididamente regresivo (…).

Una nueva oligarquía

La expansión neoliberal del mercado –característica de la actual crisis democrática- se lleva a cabo mediante el predominio de sujetos privados que (re)conquistan funciones que en el pasado  habían dependido de  la esfera pública. Empresas multinacionales, organizaciones multilaterales (Organización Mundial del Comercio, Fondo Monetario Internacional, Banca Mundial) e instituciones privadas (fondos de inversión, y grandes concentraciones bancarias) disponen de recursos y poderes comparables a los de muchos Estados nacionales. De aquí surge un conflicto sobre la soberanía en el que, cada vez con más frecuencia, acaban sucumbiendo estos últimos. No ya –dejémoslo claro- en el sentido de su, aunque solo sea, tendencial desaparición, tal como  había sido “previsto”, de forma aventurada, por parte de tan afortunadas como improbables teorías “imperiales” y por sus variantes subordinadas. Sino en el sentido de su frecuente renuncia al propio estatuto de entes públicos por excelencia, para convertirse ellos mismos, con toda su fuerza normativa, coercitiva y militar, en portavoces y garantes de los intereses privados(…)
No se trata por lo tanto sólo de economía, sino también de sistemas políticos. En la medida en que se rediseña las relaciones de fuerza en las sociedades concediendo un poder exorbitante al capital y a la empresa, el neoliberalismo   no incide solamente (deslocalizando, precarizando, financiarizando) sobre la producción y sobre las condiciones materiales del trabajo. Redefine también los poderes políticos en su conjunto, y los objetivos que éstos persiguen. Para utilizar las palabras de Gramsci, es un “retorno a la pura economicidad” , como consecuencia de la cual la política queda inmediatamente “conectada a la economía”

El “trentenio republicano”

Por lo demás el mismo Gramsci es uno de los más lúcidos críticos de la presentación ideológica del liberalismo como desaparición de la política, como renuncia al Estado (“mínimo”), a interferir en los acontecimientos de la economía. No se recordará nunca suficientemente la página de los Quaderni del carcere //1// en la que Gramsci subraya hasta qué punto es el liberalismo “una “reglamentación” de carácter estatal”, que es “introducida y mantenida por vía legislativa y coercitiva” y constituye  “un programa político, destinado a cambiar, en cuanto triunfa, el personal dirigente de un Estado y el programa económico del mismo Estado, esto es, a modificar la distribución de la renta nacional” (…)

Con toda probabilidad, para explicar el triunfo de lo privado con el que estamos obligados a hacer la cuentas es necesario volver a pensar por completo la segunda mitad  del siglo que hemos dejado a nuestras espaldas. Y para ello es preciso refutar la tesis hobsbawmiana que tanta fortuna tuvo. El siglo XX no es en absoluto un “siglo breve”. Al igual que la Guerra de los Treinta Años que marca al rojo vivo la primera mitad del siglo XX, hunde sus raíces en posconflictos interimperialistas  que estallaron durante los años ochenta del siglo diecinueve; del mismo modo, en lo que concierne al presunto final del siglo XX , es discutible la tesis según la cual ésta se habría consumado con la caída del Muro de Berlín y con la desaparición de la Unión Soviética. Al contrario, el siglo XX aún dura.

La escena mundial no es el resultado tan solo de las consecuencias políticas, sociales y económicas de los acontecimientos de 1989- 1991. Los procesos sobre los cuales estamos reflexionando derivan con toda probabilidad también de los acontecimientos que se  desarrollaron durante la segunda mitad del siglo transcurrido. Tras finalizar la Segunda Guerra mundial, y hasta la mitad de los años setenta, las sociedades occidentales conocieron treinta años de dinámica progresiva gracias a la vigorosa iniciativa del movimiento obrero, a la competición entre capitalismo y “socialismo real” (es decir a la necesidad de poner dique  el impacto hegemónico ejercido por un modelo que de todas formas estaba en condiciones de poder garantizar  el pleno empleo y la exigencia de derechos sociales) y al avanzado marco jurídico-institucional diseñado por las Constituciones postbélicas

En el periodo que va de 1945 a 1975 –que podríamos definir como trentenio republicano- las sociedades occidentales cambiaron de cara. Se abrieron, se integraron, se transformaron, no solamente en el terreno de las libertades civiles, sino también en el plano de la participación democrática y en el reconocimiento concreto de los derechos del trabajo.  No sorprende que esta dinámica progresiva  suscitara una furiosa reacción, que se desplegó, a partir de finales de los años Setenta, con las características de una devastadora “revolución pasiva”. Que aún dura. Aún hoy nos encontramos envueltos en la onda larga de la respuesta que sobrevino tras el proceso expansivo que se desarrolló inmediatamente después de la segunda conflagración mundial. De esta periodización temporal, y de todo cuanto la misma implica, es preciso adquirir plena consciencia si se está verdaderamente interesado en descifrar los procesos que están transcurriendo (…)

La “revolución pasiva”

El concepto de “revolución pasiva” (que Gramsci declara haber extraído  de la obra de Cuoco sobre el “trágico experimento” de la Revolución napolitana de 1799) //2//constituye un esquema  de interpretación que los Quaderni utilizan en relación con fenómenos que son diversos entre sí: la modernización europea acontecida durante el siglo XlX (interpretada por Gramsci como efecto “pasivo” de la Revolución francesa);  y las políticas de estabilización adoptadas durante el siglo XX (durante el periodo histórico inaugurado por la Revolución de Octubre)  con la intención de salir al paso de la “crisis orgánica” del capitalismo. (…). Traer a colación este esquema interpretativo en relación con los últimos treinta años  significa, en consecuencia, formular la hipótesis de que la restauración capitalista promovida por la “revolución conservadora” reaganiano- thatcheriana  ha tenido en el plano macro histórico, una función análoga a la desempeñada por otras “revoluciones – restauraciones”, en particular por la “revolución pasiva” del siglo XX, puesta en pie por los regímenes fascistas (surgidos como antídoto contra el riesgo de contagio revolucionario que durante los Años Veinte amenazó a una gran parte de los países  europeos) y por el New Deal roosseveltiano (concebido como respuesta frente al shock de la Gran Depresión). (…)

En la medida en que reproduce, mutatis mutandis, este escenario, la actual crisis parece presentar un cuadro carente de vías de salida (…). En realidad, si nos detuviésemos en este punto, elaboraríamos una representación unilateral del proceso. Engañosa por ser incapaz de percibir las latentes potencialidades antisistémicas. Ni siquiera durante las más agudas etapas de crisis, en las cuales las fuerzas dominantes desatan su  máxima potencialidad represiva, el proceso logra zafarse de sus propias contradicciones. La dinámica evolutiva de la modernidad sigue siendo inevitablemente dialéctica. Al igual que resulta irreductiblemente dialéctico  el individualismo, que es al mismo tiempo particularismo (cada individuo es, en primer término, para sí, él mismo) y universalismo (cada uno es, sin embargo,  en sí, uno de tantos,  igual que cualquier otro). La “desasimilación” y la tendencia a la recuperación de las dinámicas de casta constituyen tan sólo un aspecto del proceso reproductivo. Junto al cual convive siempre el otro momento, vinculado a la vocación expansiva de la modernidad: a su destino dinámico, inscrito en la necesidad imparable que el capital tiene de ensanchar la esfera de la reproducción. Y que lo obliga a activar, en el corazón mismo de la explotación, un movimiento objetivamente inclusivo. (…)

Crisis y potencialidad de lo moderno

A pesar de todas las apariencias, el diagnóstico de una normalización sustancial del paisaje político global realmente no resulta convincente. Al contrario, parece bien fundamentada la impresión de que está arraigando en el mundo un sentimiento de rechazo en relación con la política inicua y destructiva practicada por los grupos dominantes de los países más industrializados. Difundiendo aversión a consecuencia de la guerra, de la devastación ambiental, de la apropiación privada de los recursos naturales. Alimentando una renovada consciencia sobre el estatuto irreductiblemente público – global (“común”) de los resultados del trabajo global, de la investigación científica, de la interacción comunicativa. Promoviendo movimientos y experiencias de lucha contra la precarización del trabajo (recordemos la batalla ganada contra el “contrato de primer empleo” la primavera pasada en Francia) y por la globalización de los derechos y la gestión pública de los lenguajes, de los saberes, de los “bienes comunes”. Y asumiendo progresivamente las características de una poderosa instancia de legitimación, que cada vez está más cerca de rebasar el límite que separa los sectores más conscientes de la masa despolitizada para conformar a partir de ella misma un nuevo sentido común. .

Y creo posible afirmar lo mismo a propósito de la cálida participación  con la que se sigue, en todas las regiones del planeta, las experiencias de autonomía que se desarrollan en los países (en particular en América Latina) que más recientemente se han sacudido de encima el yugo colonial, y las luchas populares de resistencia y de independencia. Pensemos en la derrota sufrida por los Estados Unidos en el teatro bélico iraquí –casi un nuevo Vietnam- y en la dramática situación en que se encuentra el pueblo palestino. También en el caso de esta participación masiva y de sus premisas “ético- políticas”, no nos encontramos ante hechos acabados, sino ante procesos en curso.  Que sin embargo aluden a las constituciones de nuevas subjetividades críticas, a la  lenta cimentación de un conjunto cada vez más vasto y articulado de fuerzas sociales , políticas y estatales anticapitalistas. (…)

La crisis es lugar de ambivalencias. De inestabilidades, de conflictos y de más o menos poderosas dinámicas progresivas. La dialéctica de la crisis moderna (la tensión entre vectores expansivos y respuestas regresivas) es el gran  tema de losQuaderni del carcere . Incluso cuando se interroga sobre el advenimiento  del fascismo, Gramsci reflexiona desde este supuesto. Por esta razón –prisionero en la cárcel, mientras parte de Europa yacía sometida a la tiranía – declara que aquella victoria es “transitoria”,  al igual que  la derrota sufrida por el movimiento revolucionario en su tentativa de generalizar Octubre. Esta es su lección fundamental, gracias a la cual aún hoy –a los setenta años de su muerte- encontramos en la lectura de losQuaderni  la clave teórica de nuestra época y de su crisis.

NOTAS DEL TRADUCTOR: //1 Antonio Gramsci, Quaderni del carcere,  Ed. Einaudi, Turín  1975 y 2001. 5 vols. Edición a cargo de Valentino Gerratana.  Hay traducción española de Ed. Era de México  en 6 vols. //2 El político y ensayista Vincenzo Cuoco (1780 -1823) participó en la revolución jacobina de Nápoles, de 1798,  que instauró la República Partenopea. Esta república no consiguió sostenerse y fue derrotada  con la intervención de la escuadra inglesa del almirante Nelson. A consecuencia de esa derrota, Cuoco fue encarcelado, y luego debió exiliarse forzosamente en el extranjero. En esta contrarrevolución se produjo además otro acontecimiento histórico de importancia, sobre el cual reflexionaría Cuoco. Las fuerzas reaccionarias, los realistas y la Iglesia  lograron que amplias capas populares se sumaran a la reacción y que intervinieran activamente en el derrocamiento del joven régimen. Cuoco escribió una obra titulada Ensayo histórico sobre la revolución napolitana, en el que acuña el término “revolución pasiva”, del que parte Gramsci para elaborar su nuevo concepto cuya capacidad explicativa es incomparable con la del viejo revolucionario. Una observación más: el autor de este artículo, Del Burgio, se inspira en Gramsci para comprender la actual Revolución pasiva, precisamente por la importancia de la obra política del gran revolucionario italiano. Podemos ver en estas páginas la potencia heurística que poseen las categorías hermenéuticas elaboradas por Gramsci para explicar la historia del siglo XX. En una anterior referencia al mismo,  hemos leído el texto de Gramsci   en el que éste hace el análisis en el que  desenmascara y denuncia lo que en realidad es el liberalismo. Esta cita, importante por sí misma, no deja, con todo de tener un significado añadido dentro del actual debate ideológico italiano. El Instituto Gramsci, que hoy es orgánico del Partido de los demócratas,  ha elaborado, en los últimos tiempos una nueva interpretación manipulada de las ideas de Gramsci. Su actual director Giuseppe Vacca, y todo el organismo institucional,  presentan ahora al gran revolucionario comunista como un pensador liberal.

Alberto Burgio es un filósofo italiano, reconocido estudioso de Gramsci y de la historia del movimiento obrero italiano. Artigo publicado em 30/09/07

Fonte: Sinpermiso.info